quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O ódio do movimento antivacina contra autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Uma mão de homem branco faz sinal de "Pare" a uma mão de médico com uma seringa cheia de uma dose de vacina. O homem antivacina diz "Não quero me vacinar. Meu capacitismo contra autistas e minha crença fanática em fake-news não me permitem". Fim da descrição.

Editado em 14/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo contém menções a capacitismo contra autistas. Continue lendo-o apenas se tiver segurança de que não sofrerá gatilhos traumáticos.

A fraudulenta teoria de que vacinas “causam autismo” em crianças revelou ao mundo o quanto o movimento antivacina odeia os autistas.

O tempo todo falando da nossa condição como se fosse uma doença, e das mais terríveis, ele semeia pânico e prega intolerância para muitas mães e pais desinformados de crianças pequenas. 

Os induz a acreditar que é preferível deixá-las vulneráveis a doenças de verdade, que causam muito sofrimento e podem matar ou deixar sequelas irreversíveis, a vê-las se revelar neurodivergentes.

Diante da reação dos adeptos dessa abominável ideologia à vacinação contra o Covid-19, conheça melhor esse lado capacitista dela. Saiba como ela induz as pessoas a terem ódio e preconceito contra nós autistas e se apavorarem com a possibilidade de terem filhos que sejam como nós.

O artigo fraudulento de Wakefield: o “start” do ódio antiautismo no movimento antivacina

O ódio antiautismo que se vê hoje no movimento antivacina começou com a publicação, em 1998, do artigo do hoje ex-médico Andrew Wakefield. Seu conteúdo “alertava” sobre uma suposta relação entre a vacina tríplice MMR, contra sarampo, caxumba e rubéola, e a manifestação de comportamentos autísticos em crianças que a haviam recebido.

Só que várias pesquisas (leia aqui uma matéria sobre uma delas), nos anos seguintes, refutaram toda e qualquer relação de causa e efeito entre as vacinas e o autismo.

Em 2010, após uma queda considerável no número de crianças vacinadas com a tríplice no Reino Unido, a revista científica na qual o “estudo” de Wakefield havia sido publicado se retratou, por causa da metodologia fraudulenta utilizada e da presença de sérios conflitos de interesses, e o retirou daquela edição de 1998.

E logo em seguida Wakefield teve o seu registro profissional cassado, sendo proibido de exercer a medicina desde então.

A punição aplicada ao ex-médico vigarista foi exemplar, mas não conseguiu parar o estrago que o artigo dele causou. 

Desde então o movimento antivacina, com a conivência das big techs donas das grandes redes sociais, não tem parado de crescer, inventar mais mentiras sobre uma suposta nocividade das vacinas e diminuir o número de pessoas que confiam nelas.

Como a ideologia antivacina irradia seu preconceito contra os autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Tweet capacitista antigo de Donald Trump, em que ele diz (em inglês) "Criança pequena saudável vai ao médico, é enchida com uma injeção massiva de muitas vacinas, não se sente bem (sic) e muda - AUTISMO. Muitos casos assim!". Fim da descrição.
O capacitismo de Donald Trump: "Criança pequena saudável vai ao médico, é enchida com uma injeção massiva de muitas vacinas, não se sente bem (sic) e muda - AUTISMO. Muitos casos assim!

O ódio antiautismo dos opositores das vacinas continua se apoiando na fraude de Wakefield. 

Isso ficou perceptível, como revela essa matéria de 2019 do Último Segundo/IG, com o documentário Vaxxed, de 2016, em que o ex-médico reafirma suas mentiras de 1998, e em declarações de gente como Donald Trump, em 2014 - quando poucos acreditavam faltar dois anos para ele ser eleito presidente dos Estados Unidos -, e a atriz Jenny McCarthy, que diz que o filho “pegou autismo” após ser vacinado.

É muito evidente o quanto o discurso dessas pessoas é repleto de capacitismo, de uma visão do autismo como uma “terrível doença”, ao invés de uma condição neurodivergente natural que combina deficiência com virtudes e excentricidades de personalidade.

Como o hoje ex-presidente dos EUA disse no fatídico tweet de 2014, o indivíduo autista essencialmente “não se sente bem” tendo o cérebro que tem. Ou seja, é um “doente” crônico.

Sua “doença” é simplesmente ser ele mesmo. É ser alguém que, ao mesmo tempo que tem limitações de processamento sensorial, comunicação e socialização, pode ser uma pessoa muito inteligente, gentil, questionadora das injustiças, sincera, leal etc. justamente por ter um cérebro diferente.

Atribuindo uma natureza tão negativa ao autismo, os antivacinas defendem que ele deixe de existir. Essa erradicação viria tanto por “curas” que na verdade não funcionam e podem causar graves danos à saúde - como defende o livro Whitewash, de Joseph Keon - como pela recusa de cada vez mais pessoas de se vacinar e deixar seus filhos serem imunizados.

Isso é excelente para os seus gurus, que muitas vezes ganham dinheiro graças a esse discurso criminoso. É o caso dos charlatões vendedores de “tratamentos” fraudulentos para condições que não são doenças, como o próprio autismo, e para as reais doenças cujo contágio a falta de vacinação permite.

Ou seja, os que faturam com as vendas de MMS, óleos essenciais pseudomedicinais, livros de dietas sem glúten e sem lactose adotadas por crenças falsas, sessões de coaching pseudoterapêutico etc. Precisam manter seu público cativo, por isso disparam suas desinformações e manipulações todos os dias.

Ou seja, defender que é melhor uma criança sofrer e morrer com uma evitável doença contagiosa do que ser autista é lucrativo para pessoas muito mal intencionadas.

Conclusão

Por mais que os cientistas e as autoridades de saúde refutem suas mentiras, os antivacinas, por terem interesses pessoais escusos nessa ideologia, permanecem propagando-as e convencendo os incautos de que o autismo é uma doença e deve ser combatido ou prevenido.

Esse capacitismo, somado aos crimes contra a saúde pública, deve nos motivar a combater esse movimento assassino com o vigor que for possível.

Já basta de ver essas pessoas nos tratando como doentes e propagando desinformação que mata!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Por que cada vez mais autistas rejeitam os termos “Síndrome de Asperger” e “aspie”

Descrição da imagem #PraCegoVer: A expressão Síndrome de Asperger aparece em destaque riscada com um grande X vermelho. Embaixo dela, está o título Por que cada vez mais autistas estão abandonando e rejeitando o termo "Síndrome de Asperger". Fim da descrição.


Editado e atualizado em 14/12/2022

Uma tendência tem sido vista desde o final da década de 2010: cada vez mais autistas estão abandonando o termo “Síndrome de Asperger” para se referir ao autismo de nível 1 de suporte e a identidade social “aspie”.

Um após o outro, perfis e páginas de redes sociais, sites e canais de vídeos administrados por autistas têm retirado de seus nomes as referências à terminologia e substituído pelos termos “autista” e “autie”.

Se você ainda não sabe por que tanta gente está rejeitando-os, saiba aqui neste artigo. Você também terá a oportunidade de deixar você mesmo(a) de utilizá-los e preferir se referir aos autistas de nível 1 como autistas mesmo.

Os vários porquês da queda em desuso dos termos

Tenho percebido que esse abandono, que já estava acontecendo desde a publicação do DSM-5, acelerou desde 2019 ou os primeiros meses de 2020.

São várias as razões, a seguir.

1. O DSM-V e o CID-11 tornaram o diagnóstico de “Síndrome de Asperger” obsoleto

Em 2013, o DSM-V abandonou o diagnóstico de Síndrome de Asperger, ao unificar todas as condições então associadas ao autismo (exceto a Síndrome de Rett) no “Transtorno” do Espectro Autista (TEA).

Ao invés de um conjunto de condições relacionadas, o espectro autista passou a ser um diagnóstico só, diferenciado internamente apenas pelo grau de necessidade de apoio - o qual muita gente ainda confunde com os de “severidade” e “funcionamento”.

Porém, a terminologia inspirada em Hans Asperger ainda sobreviveu por mais oito anos por causa da vigência do CID-10. Até dezembro de 2021, ela ainda era usada por psiquiatras nos países em que o Código Internacional de Doenças* é usado para condições psiquiátricas.

A partir de janeiro de 2022, entrou em vigor o sucessor CID-11. Ele acompanhou o DSM-V e também unificou todas as condições autísticas no TEA. Nesse meio, substituiu a “Síndrome de Asperger” (código F84.5 no CID-10) pelo “Transtorno” do Espectro do Autismo sem deficiência intelectual (DI) e com comprometimento leve ou ausente da linguagem funcional, de código 6A02.0.

Com os profissionais de saúde mental e neurológica aderindo ao CID-11 e deixando para sempre de usar o termo em questão, não faz mais sentido continuar usando-o como um “tipo de autismo”.

*Apesar de o autismo constar no intitulado Código Internacional de Doenças, ele não é uma doença. Condições mentais não patológicas também são abrangidas pelo CID.

2. O livro Crianças de Asperger denuncia o sombrio porquê de “aspies” terem sido clinicamente diferenciados dos demais autistas

Crianças de Asperger [link afiliado] conta uma parte importante da história inicial do autismo, quando foi diagnosticado e descrito pelos austríacos Leo Kanner e Hans Asperger no contexto do regime de terror nazista.

Entre as revelações do livro, está o porquê de Asperger ter diferenciado as crianças que hoje consideramos autistas de nível 1 das de outros níveis de suporte: ele estava rotulando os pequenos autistas sob a ótica da “serventia” dos indivíduos para o regime totalitário então em vigor.

Assim, as primeiras, consideradas de “alto funcionamento”, seriam poupadas, e as últimas, tachadas como de “baixo funcionamento”, enviadas para a morte.

Existe toda uma controvérsia sobre a conduta de Asperger, se ele estava tentando salvar parte das crianças da execução ou se sua postura, de designar aquelas com maiores limitações para serem mortas pela máquina de extermínio do nazismo, era da vontade própria dele e refletia um apoio individual ao mesmo.

Mas um fato tem sobressaído: ele era um nazista e participou do assassinato de crianças. Essa constatação iniciou a crescente rejeição ético-moral do diagnóstico de “Síndrome de Asperger” e da identidade social “aspie”.

O resultado foi que o processo de abandono dessas terminologias se acelerou ainda mais desde o lançamento do livro.

Um exemplo de como a diferenciação da "Síndrome de Asperger" em contraste com o restante do espectro autista dá margem a uma visão equivocada e estereotipada sobre como é ser um "aspie", incluindo a de não ser um "autista de verdade"

3. Não existe nenhum critério relevante para diferenciar “aspies” de autistas nível 1 “não aspies”

Sempre houve fortes dúvidas sobre que sentido fazia diferenciar a “Síndrome de Asperger” do “autismo de alto funcionamento” (AAF), ou mesmo se ambos representavam ou não a mesma condição autística.

Isso se dava porque nunca existiram diferenças relevantes entre os “aspies” e os autistas “leves” “não aspies”. As mais disseminadas eram a idade em que a pessoa começou a falar e o seu nível de inteligência.

Para muitas pessoas, se a pessoa começou a falar na idade típica, em torno de 1 ano, e tem inteligência acima da média, é “aspie”; se aprendeu a falar com atraso e tem inteligência apenas moderada, não seria “aspie”, mas sim AAF.

O problema é que existem muitos autistas que ficam no meio-termo entre ser “aspie” ou de “alto funcionamento”. 

No meu caso específico mesmo, eu aprendi a falar aos 3 anos e 2 meses de idade. Mas com essa única exceção, tenho todas as características da “síndrome”, além de ter sido diagnosticado superdotado aos 4 anos. Ou seja, fiquei no limite entre o “aspie” e o AAF.

Além disso, ambas as diferenças são muito subjetivas. Em relação ao atraso do começo da fala, nunca se especificou de quantos anos ele teria que ser - se a criança, se falou só a partir dos 3 anos, como no meu exemplo, era invariavelmente considerada AAF ou poderia ser sim diagnosticada “aspie”.

E quanto à inteligência, nunca se mencionou quais parâmetros a definem. Um autista com conhecimentos extremamente avançados em futebol ou ficção nerd e dificuldade de entender Matemática e Lógica, mas sem deficiência intelectual, seria considerada inteligente a ponto de ser rotulado como “aspie”? Ou teria um “QI médio ou baixo” e seria lido como AAF?

Tanto não há uma diferenciação objetiva relevante entre ambas as condições que elas foram unificadas pelo DSM-5 e pelo CID-11. “Aspies” e AAFs são hoje simplesmente autistas de nível 1 de suporte - também conhecidos, na antiga categorização popular por “severidade”, como “autistas leves”.

4. A diferenciação entre “aspies” e autistas “não aspies” favorece a discriminação capacitista

Um sério problema de âmbito ético em se distinguir “aspies” de autistas “não aspies” é que isso criou uma hierarquização moral entre os autistas, aos olhos tanto de muitos neurotípicos quanto aos de alguns “aspies” que reproduzem capacitismo.

Nessa hierarquia, os “aspies” são vistos como a “elite” dos autistas. São tratados como se fossem os mais “capazes”, inteligentes e habilidosos do espectro e tivessem até alguns “poderes” superiores aos dos neurotípicos.

E dentro dessa “elite”, os “aspies” superdotados - ou seja, com dupla excepcionalidade - são postos no topo e aclamados como correspondentes ao estereótipo do gênio tímido excêntrico e pouco sociável.

Enquanto isso, os AAF e os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, com inteligência considerada “média” ou deficiência intelectual, ficam numa posição mais “baixa”

São tidos como intelectualmente “inferiores” e, portanto, “menos capazes” ou mesmo “incapazes”. Têm seus verdadeiros potenciais, habilidades, capacidades e demandas ignorados e desvalorizados.

Isso dá margem a um triste costume de discriminação, inclusive dentro da própria comunidade autista. 

Os neurotípicos tendem a ter muita admiração - muito hipócrita, por sinal - pelas habilidades que muitos “aspies” demonstram, em especial os duplo-excepcionais, enquanto o que dedicam aos “não aspies” é pena, subestimação das capacidades e desejo de “curar” ou “consertar”.

Já os “aspies” com capacitismo internalizado, em especial os politicamente de direita, acabam achando a si mesmos “superiores” aos demais autistas, mais merecedores do sucesso e da felicidade, e tratando de maneira preconceituosa os demais integrantes do espectro.

5. Essa distinção prejudica os próprios “aspies”

Essa hierarquização entre “aspies”, AAFs e autistas de níveis 2 e 3 não prejudica somente os inferiorizados, mas também aos próprios “aspies”.

Por serem os mais notados como “habilidosos” e de “grande potencial”, são vistos como “menos autistas” do que o restante do espectro. Por causa disso, sofrem mais cobrança e pressão da sociedade para se comportarem igual aos neurotípicos.

Sempre que não conseguem cumprir essas expectativas, são vistos como “esquisitos”, “mal educados”, “grosseiros”, “mal comportados” e tratados de maneira hostil e capacitista.

Além disso, os mesmos que os tacham de “gênios esquisitos” e não os veem como “autistas de verdade” ignoram-lhes as limitações e necessidades específicas.

Não percebem a propensão do “aspie” a sofrer sobrecarga mental, emocional e sensorial; sua dificuldade de socializar; sua limitação na compreensão e uso de linguagem não verbal e regras não ditas; suas condições coexistentes etc.

Daí, por não serem reconhecidos como autistas “de verdade”, têm ainda mais dificuldade para conseguir um diagnóstico - que hoje ainda não é considerado um direito e, por isso, requer sorte e dinheiro - e o laudo correspondente que lhes garantiria o acesso aos direitos de pessoas com deficiência.

Isso quando ao menos sabem e entendem que são neurodivergentes. Afinal, a disponibilização de informações sobre o espectro autista ainda não tem um alcance satisfatório e não chegou a todos os autistas e seus familiares ou guardiões.

Muitos autistas “aspies” não diagnosticados, por pouco ou nada entenderem sobre a condição, não se (re)conhecem como neurodiversos. Continuam achando-se neurotípicos “esquisitos”, sofrendo capacitismo sem saber por quê e tendo vergonha de si mesmos e suas limitações.

6. A palavra “síndrome” patologiza o autismo

Quando foi criado, oficializado e incluído entre os nomes das condições do espectro autista nos anos 80, o termo “Síndrome de Asperger” refletia o paradigma da patologia, também conhecido como o modelo médico do autismo.

Todo o jeito de ser “aspie”, com seus potenciais, pontos positivos, excentricidades, limitações e necessidades de suporte, era tachado pela comunidade médica de “síndrome”. Algo análogo, por exemplo, a condições severamente negativas como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), a Síndrome de Tourette e a Síndrome do Impostor.

Por causa disso, a rejeição da terminologia “Síndrome de Asperger” também tem sido uma oportunidade em que muitos autistas reafirmam seu repúdio à designação do autismo como “síndrome”, “transtorno”, “perturbação” ou “condição médica” ao invés de uma deficiência, condição de existência e diferença neurológica natural.

Conclusão

Tem ficado a cada dia mais evidente por que, depois da unificação do espectro autista pelo DSM-5 e pelo CID-11 e do lançamento do livro Crianças de Asperger, a continuidade do uso das terminologias “Síndrome de Asperger” e “aspie” tem sido cada vez mais desencorajada.

Levando em conta que a antiga distinção entre os “aspies” e os demais autistas trouxe malefícios e discriminação a toda a comunidade autista - de maneiras distintas que dependem da posição do indivíduo no espectro -, eu integro a categoria de pessoas que recomendam esse desuso.

Por isso, se você, autista ou não, ainda reserva um espaço para Hans Asperger nas terminologias do autismo, considere deixar de reservar. Utilize, no lugar, “autismo/autistas de nível 1 de suporte”.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Discriminação contra autistas em livros de autoajuda: como obras que deveriam nos ajudar a viver melhor nos trazem mais sofrimento e frustração

Descrição da imagem #PraCegoVer: A imagem mostra a capa do livro Comunicação Global, de Lair Ribeiro, um exemplo de autoajuda que discrimina autistas, e a legenda "Como livros de autoajuda exaltam habilidades neurotípicas, discriminam os autistas e lhes trazem sofrimento e frustração". Fim da descrição.

Editado em 15/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo menciona capacitismo, discriminação e problemas de autoestima. Continue lendo-o apenas se tiver certeza de que não sofrerá gatilhos psicológicos.
Obs.: Este artigo não debate a eficácia (ou falta dela) dos livros de autoajuda em ajudar os leitores a terem uma vida melhor. Ele pressupõe que algumas obras desse gênero, quando não excluem autistas, podem sim orientá-los, ainda que de maneira limitada.

A discriminação contra autistas muitas vezes vem de onde muitos de nós menos esperavam: os livros de autoajuda e desenvolvimento pessoal e profissional.

Neles buscamos saber como viver vidas mais produtivas e felizes, ter mais resultados positivos no nosso trabalho, fazer mais amizades etc. Mas o que encontramos em muitas dessas obras nos causa, na verdade, frustração e sofrimento imensos.

Saiba neste artigo como a exclusão capacitista de autistas tem sido comum nesse tipo de livro e o que precisa ser feito para pelo menos diminuir isso.

Como a autoajuda tem tratado os autistas como se não existissem ou fossem inferiores

A imensa maioria dos livros de autoajuda é direcionada unicamente para neurotípicos, mas nunca especifica esse foco. Ou seja, foram pensados e escritos de maneira tal que é como se autistas não existissem ou não fossem dignos de consideração.

Têm entre seus focos o domínio de habilidades sociais e do uso e compreensão da linguagem não verbal. Bom seria se apenas ensinassem o leitor a adquiri-las ou melhorá-las caso as tenha pouco - o que seria muito bem-vindo para o público autista. 

Só que não se restringem a esse objetivo. Assumindo o atributo de "manuais do sucesso", fazem questão de ressaltar que só quem as domina com plenitude tem chances significativas de ser aceito e prestigiado na sociedade.

Enfatizam que saber habilidades extremamente difíceis - quando não impossíveis - para autistas, como o contato visual, o rapport, a sincronização entre a gesticulação manual e a fala, a transmissão de mensagens implícitas por meio dos movimentos dos olhos, a fala com muita clareza e fluidez e a postura corporal em cada situação, é decisivo para o o cultivo de amizades e relacionamentos amorosos, o sucesso e a felicidade. 

Subentendem, ou mesmo deixam explícito, que quem não é hábil com tudo isso tende a permanecer com uma vida de baixa qualidade e nunca ser bem-sucedido na vida pessoal e profissional.

Ao tomar isso como uma verdade "óbvia" e incentivar que o leitor respeite e admire mais quem domina essas habilidades e menos quem tem dificuldade de assimilá-las, a autoajuda incentiva ativamente a discriminação contra autistas.

Exalta o comportamento neurotípico como o único que deve ser aceito e apreciado. Hierarquiza as pessoas nas relações humanas, colocando:

  1. No topo, os neurotípicos dominadores de habilidades sociais e comunicacionais, como os mais dignos de aceitação, respeito, prestígio e sucesso;
  2. Na camada intermediária, os não autistas não tão hábeis mas que podem aprendê-las sem grandes dificuldades;
  3. Na mais inferior, os autistas, que na maioria dos casos não conseguem aprendê-las e dominá-las por mais que se esforcem, fadados a uma vida de fracassos e à margem das relações humanas.

Os autores geralmente não intencionam inferiorizar os autistas e incentivar o capacitismo. Só que eles, na maioria das vezes, não sabem da existência dos de nível 1 de suporte. 

Provavelmente só reconhecem como autistas “de verdade” aqueles de níveis mais avançados de necessidade de suporte, com limitações muito significativas de comunicação.

Por isso, acreditam que todos aqueles que leem seus livros têm o mesmo potencial de aprender essas habilidades. Que só existem neurotípicos nas ocasiões sociais. 

Não admitem que existem aqueles cuja condição de neurodesenvolvimento as limita e dificulta esse aprendizado.

A frustração do autista que não encontra apoio nesses livros

Descrição da imagem #PraCegoVer: Uma mulher branca de cabelos castanhos e louros de tamanho médio e um homem também branco de cabelo preto curto, ambos usando camisas com listras, horizontais, olham nos olhos um do outro. Fim da descrição.
Contato visual, uma das habilidades mais difíceis para a maioria dos autistas e uma das mais exaltadas por livros de autoajuda

Por causa da abordagem capacitista e invisibilizadora dos livros de autoajuda, o leitor autista quase certamente encontrará nada além de frustração e vergonha de si mesmo.

O impacto psicológico de saber que a felicidade, o sucesso e a prosperidade, segundo essas obras, estão condicionados a habilidades que ele nunca conseguirá dominar e, portanto, são inalcançáveis é terrível.

Ele tentará imitar essas habilidades, mas essa cópia não será bem-sucedida. No máximo servirá como “máscara” social na tentativa de temporariamente parecer neurotípico aos olhos da sociedade.

Desanimado por não conseguir o mesmo êxito dos neurotípicos, se sentirá um fracassado. Sua autoestima, que provavelmente já era baixa, cai ainda mais.

E mais uma vez o autista sofre as consequências da discriminação e é induzido a acreditar que o problema está nele mesmo, não no capacitismo da sociedade.

O que fazer para diminuir esse problema

O que os autores de autoajuda podem fazer para que seus livros deixem de considerar a existência apenas de neurotípicos é, em primeiro lugar, se conscientizar sobre nós autistas.

Devem conhecer nossas limitações, capacidades, necessidades específicas. Entender que tendemos a não nos encaixar no perfil que eles acreditam ser o único “normal” de habilidades sociais e comunicacionais.

A partir disso, pedirão para as editoras inserirem, nas próximas reimpressões de seus livros, um aviso de conteúdo de que autistas poderão ter dificuldades de aplicar os ensinamentos ali presentes. 

Isso seria uma medida provisória até que futuras edições dessas obras e títulos inéditos fossem lançados incluindo e respeitando devidamente a diversidade neurológica e comunicacional.

Nessas futuras obras mais inclusivas, a abordagem deverá deixar de lado a discriminatória ideia de que as habilidades de comunicação e socialização neurotípicas são “essenciais” para as pessoas serem felizes e aceitas.

Precisará incentivar que os não autistas considerem as especificidades dos neurodivergentes, abandonem as velhas exigências e expectativas de comportamento centradas nos padrões neurotípicos e nos aceitem do jeito que somos sem demandar que nos ajustemos a estes.

Daí então veremos o gênero de autoajuda deixar de ser o foco de capacitismo antiautista que é hoje.

Conclusão

Os autores de autoajuda precisam urgentemente se conscientizar sobre nós autistas e nosso jeito de ser. 

Está na hora de perceberem que seus livros muitas vezes nos fazem mais mal do que bem ao exaltarem o domínio de habilidades exclusivas dos neurotípicos e o considerarem obrigatório para uma vida feliz e bem-sucedida.

Estamos fartos de ser vistos como exemplos de pessoas malsucedidas, fracassadas, condenadas a sofrer pelo resto da vida por não serem como os não autistas. Porque é isso que essas obras deixam a entender para os seus leitores.

Queremos uma literatura de desenvolvimento pessoal e profissional inclusiva, que reconheça e respeite a nossa existência, considere nossas limitações e ajude tanto a nós quanto aos neurotípicos. 

Que não exija mais que todos tenham as mesmas habilidades de comunicação e socialização para merecerem o mesmo sucesso na vida. Que contemple a neurodiversidade.

Um último alerta

A autoajuda nunca deve substituir a psicoterapia com psicólogos capacitados, formados em Psicologia e especializados nas necessidades específicas do paciente. Portanto, se você costuma recorrer a livros, vídeos e cursos de autoajuda e coaching na tentativa de não precisar da Psicologia, reveja o quanto antes essa postura e busque ajuda de um(a) psicólogo(a).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A discriminação contra autistas na esquerda, como isso pode levar muitos de nós a buscarem a direita e como prevenir isso

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um semicírculo com vários prendedores de papel coloridos com carinhas felizes aparece no rodapé da imagem, quanto mais acima aparece um prendedor amarelo isolado sem expressão facial. Fim da descrição.

Editado em 21/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo contém menções a capacitismo, discriminação e abusos verbais contra autistas. Leia-o apenas se tiver segurança de que não sofrerá gatilhos psicológicos.
Obs.: Este artigo não é antiesquerdista, nem é uma generalização de todas as pessoas neurotípicas de esquerda.

Algo infelizmente sistemático nas esquerdas hoje, desde coletivos social-liberais e socialdemocratas até marxistas e anarquistas, são a exclusão e invisibilização de nós autistas e das nossas pautas.

São muito comuns nesses meios o capacitismo contra nós, o baixo conhecimento sobre as pautas da neurodiversidade e a exigência sutil de fortes habilidades sociais para as pessoas se integrarem e permanecerem nos movimentos sociais e coletivos políticos.

Esse quadro de exclusão expõe muita gente da comunidade autista a um sério risco: o de serem cooptados pela direita. Isso inclui tanto o voto em candidatos conservadores que promovem assistencialismo a pessoas com deficiência quanto a adesão ideológica ao neoliberalismo.

Se você está entre as pessoas de esquerda que ainda não têm consciência desse problema, convido você a conhecê-lo mais a fundo neste artigo. Depois de se conscientizar sobre ele, considere levar o debate para dentro dos movimentos dos quais você participa.

A exclusão da categoria autista entre as minorias defendidas pelos neurotípicos de esquerda

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um círculo de figuras humanas de cartolina dando as mãos e formando um grupo, enquanto no lado esquerdo uma figura humana parecida de cor diferente aparece isolada, como se tivesse sido discriminada pelo círculo, e cabisbaixa. Fim da descrição.

O primeiro aspecto mais destacável do problema que aqui denuncio é a não inclusão do movimento autista e de suas pautas por parte da grande maioria dos neurotípicos de esquerda, pelo menos no Brasil.

Nessa metade do espectro político, fala-se muito da classe trabalhadora, da população em situação de pobreza ou miséria, das mulheres, das pessoas racializadas, das LGBTQIAP+, das minorias religiosas, dos refugiados e imigrantes de países pobres etc.

Inclusive está-se começando a incluir as pautas das pessoas com deficiência em geral - pelo menos as com deficiências físico-motora, auditiva, visual e/ou intelectual - e dos animais não humanos.

Mas ainda não se começou a falar com a devida frequência, nem mesmo como pertencentes à categoria das PCDs, dos autistas.

As nossas pautas, entre elas:

  • O combate ao capacitismo;
  • A derrubada do modelo médico do autismo em prol do modelo social;
  • O enfrentamento à exclusão de autistas do mercado de trabalho;
  • O controle dos estímulos sensoriais nos espaços públicos;
  • A renda mínima para autistas;
  • A compreensão e respeito às nossas limitações de socialização e comunicação,

quase nunca são debatidas pelos coletivos políticos progressistas - exceto o próprio movimento autista.

O capacitismo e a exclusividade neurotípica nas reuniões, atividades, lazeres e confraternizações dos movimentos sociopolíticos

Pelo contrário, é muito comum ignorarem a nossa existência. Costuma-se nos relegar de maneira generalizada àquele clássico estereótipo, o do menino branco de classe média que só vive isolado em casa, na escola especial e nas terapias e não se comunica nem participa da vida pública.

Porque o que se vê - ou, pelo menos, o que eu presenciei em todas as vezes em que tentei participar de coletivos políticos de esquerda ou veg(etari)anos - é uma ordem social voltada exclusivamente para neurotípicos predominantemente extrovertidos.

As pessoas que entram nesses grupos são constantemente pressionadas, mesmo que de maneira sutil, a:

  • socializar-se;
  • perceber de imediato (ou conhecer previamente) e entender plenamente todas as regras sociais implícitas;
  • expressar-se da maneira mais clara e recheada de nuances não verbais possível;
  • estabelecer e manter habilmente contato visual com seus interlocutores;
  • e entender fluentemente que mensagens a postura corporal, a expressão facial, os movimentos dos olhos, a entonação da voz, a gesticulação manual etc. dos outros estão transmitindo.

Ficamos sob a angustiante sensação de estar sob coação implícita do ambiente e das pessoas ao nosso redor para que nos comportemos como se fôssemos neurotípicos. Isso nos força a mascarar o nosso comportamento, no que cedo ou tarde acabamos quase que inevitavelmente falhando.

Ai daquela pessoa que violar alguma norma social, por não tê-la percebido ou entendido. Ai dela se, por exemplo, falar alguma verdade (mesno que não seja antiética) sem filtro, comer de maneira que achem exagerada em confraternizações, entender de maneira literal alguma fala repleta de significados ocultos.

Ela será duramente criticada, repreendida e maltratada, tendo suas dificuldades de compreensão normativa e comunicacional tratadas como desvio de caráter, estupidez, lerdeza.

Ai também do autista que tem dificuldade de se expressar verbalmente, por motivos como o cansaço mental, a sobrecarga sensorial, a insegurança psicológica, o medo de reações negativas e rejeição e a oscilação da capacidade de encadear e desenvolver suas ideias com clareza.

Não será levado a sério, não terá suas colocações e sugestões devidamente consideradas e debatidas. Será tratado como cidadão de segunda classe.

E mesmo que consiga evitar violar o quase indecifrável código social presente nas reuniões e eventos sociais do coletivo e discursar relativamente bem, ele - salvo se for um dos palestrantes - tende a ser escanteado e ignorado.

Afinal, suas dificuldades de comunicação e entrosamento em meio a um espaço de socialização intensiva o fazem ser visto, pelos neurotípicos, como alguém pouco relevante, muito imaturo, com pouco ou nada a contribuir e desinteressado em colaborar com os deveres silenciosamente exigidos.

Tenderá a não conseguir fazer amizades, nem participar com a eficiência esperada em determinados trabalhos, nem estabelecer laços de companheirismo e fidelidade ali dentro. Com isso, não será integrado, incluído, chamado - a não ser de maneira formal e fria - para as atuações do movimento.

Digo isso porque, em várias vezes, principalmente no meio vegano, eu passei por situações extremamente chatas nas quais comportamentos (que eu não sabia serem) autísticos meus foram criticados e condenados de maneira humilhante.

E soube de pelo menos duas pessoas autistas que sofreram abusos verbais parecidos de indivíduos neurotípicos ditos de esquerda - uma delas me relatou o ocorrido e a outra eu presenciei sendo atacada em público no Twitter.

Isso sem falar que esses ambientes politizados são repletos de estímulos sensoriais que para nós autistas são muito nocivos.

Muita gente falando ao mesmo tempo, megafones e carros de som emanando sons muito altos, música muito estridente, cheiros fortes de comida - principalmente carnes - e cigarro por todos os lados, luzes que às vezes estão além do que nossos olhos aguentam...

Tem-se ali um ambiente propício para nos sentirmos sobrecarregados, estressados e à beira de um meltdown ou shutdown. Se passamos mal por causa disso, ninguém no local sabe como nos socorrer e nos acolher.

Sem habilidades para lidar com autistas passando mal, os neurotípicos presentes podem levar o autista em estado de sofrimento a outro ambiente não menos sensorialmente carregado e estressante, o que só vai piorar a situação.

Em resumo, são ambientes capacitistas, demasiadamente hostis e excludentes à presença de autistas. Que autista ainda tem disposição de integrar, por exemplo, um partido, coletivo universitário ou movimento social organizado (exceto o próprio movimento autista) depois disso?

Como muitos autistas, depois de discriminados pela esquerda, podem ser cooptados pela direita

Uma esquerda que não considera a existência dos autistas e impõe dolorosos obstáculos sensoriais e atitudinais à nossa participação em seus coletivos tende a não conquistar nem manter a convicção de muitos de nós.

Aqueles de nós, principalmente adolescentes e jovens adultos, que a idealizavam como acolhedora, inclusiva e defensora para com todas as minorias acabam se decepcionando duramente.

Com isso, boa parte da nossa população termina carregada de ressentimento e de uma visão negativa sobre como pessoas de esquerda se comportam.

Desiste dessa parcela do espectro político e busca outras que à primeira vista soem mais compatíveis com sua própria condição de vida, que os acolha.

É aí que encontram no neoliberalismo e no “libertarismo” de direita, com seu apelo à autonomia do indivíduo, uma tendência político-ideológica supostamente mais confortável, acolhedora e reconhecedora de suas necessidades e sofrimentos.

Discriminados por correntes políticas voltadas para o progresso da coletividade, são convencidos por essas ideologias de que a “saída” seria defender a si mesmos, como indivíduos, de uma sociedade “naturalmente” cruel, violenta e egoísta.

São influenciados por ideólogos que dizem que a esquerda é a verdadeira opressora e a direita é quem traz liberdade e oportunidade. Acham que isso é verdade porque, de fato, foram excluídos e discriminados por movimentos progressistas.

Adicionalmente, veem produtos necessários para o seu bem-estar, como stim toys, abafadores de som e games que tornam a vida solitária mais divertida, sendo disponibilizados pelo mercado. 

Descobrem o empreendedorismo e os trabalhos de freelance em home-office como saídas para o desemprego neurodivergente que os progressistas não estão lutando como deveriam para combater.

Daí acreditam que o capitalismo está do lado deles, que podem, com esforço próprio, ser beneficiados pela meritocracia e conseguir uma vida confortável sem precisar da luta política.

E tomam conhecimento de políticos liberais ou conservadores, como Mara Gabrilli e Romário, defendendo pautas que grande parte da esquerda tem deixado de lado em prol das pessoas com deficiência.

Com isso, passam a acreditar que a saída para uma vida melhor e mais aceitadora da sua existência é pela direita

Ou seja, pela liberdade individual, pela valorização do mercado e da iniciativa privada, pelo empreendedorismo, pelo trabalho duro que lhes daria condições de ter uma vida mais digna e pelos políticos opositores do progressismo.

As atitudes e medidas que as esquerdas precisam tomar urgentemente para reverter a exclusão e endireitamento dos autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um desenho em computação gráfica de várias pessoas coloridas em cima de um cilindro branco largo que parece uma tampa de frasco. No canto direito do desenho, uma das pessoas acima do cilindro segura a mão de uma que está fora dele, para incluí-la no grupo em cima do objeto. Fim da descrição.

Diante desse perigo de muitos autistas ressentidos pelo capacitismo de esquerda aderirem à direita, ressalto que é muito urgente que as esquerdas repensem e mudem a forma como estão nos tratando.

É preciso que os neurotípicos progressistas:

  • Em primeiro lugar, abram espaço para autistas ativistas falarem, ora online, ora nos espaços físicos utilizados pelo movimento/coletivo, sobre nossa luta, nossas reivindicações e o capacitismo dentro das esquerdas;
  • Se conscientizem sobre as nossas características, necessidades, sofrimentos, demandas e lutas políticas como minoria - e percebam que essa é a verdadeira “conscientização do autismo” que queremos para dias como o 2 de abril;
  • Reconheçam seus privilégios como pessoas tratadas pela sociedade como o “normal”, o padrão aceito de desenvolvimento e funcionamento cerebral, assim como o capacitismo que praticam no dia-a-dia e precisam desconstruir;
  • Aprendam a identificar pessoas com comportamentos autísticos e perceber, por meio da observação e de perguntas que não violem a privacidade, se elas são ou não autistas;
  • Conversem, com a devida disposição de ouvir, com aqueles dentre nós que estão dispostos a disseminar a bandeira da neurodiversidade e do anticapacitismo, de modo a conhecer melhor o que reivindicamos e declarar a solidariedade e a aliança das quais precisamos;
  • Após terem passado por essa conscientização, eduquem outros neurotípicos de seu movimento/coletivo sobre o capacitismo e como combatê-lo;
  • Adaptem seus espaços físicos e eventos para que futuros membros autistas se sintam realmente acolhidos, aceitos e incluídos;
  • Adotem medidas como disponibilizar a lista das regras sociais e organizacionais do grupo e o que os membros autistas podem fazer para não as violarem, repreender atitudes capacitistas por parte de membros neurotípicos e checar se cada membro novo ou pessoa interessada em aderir ao movimento é autista ou não;
  • Façam a devida intersecção entre os movimentos sociais já consolidados e o autista - ex.: incluindo as pautas das mulheres autistas no feminismo e as das pessoas LGBTQIA+ autistas no movimento LGBTQIA+, considerando a situação de opressão dos trabalhadores e desempregados autistas.

Com essas atitudes, muitos autistas deixarão de ver os ambientes de esquerda como opressores e hostis contra eles. E cada vez menos de nós buscarão na direita individualista o que até hoje não encontraram nos movimentos sociopolíticos.

Conclusão

Os neurotípicos de esquerda precisam perceber, à medida que fortalecemos o movimento autista, o quanto estão sendo, em sua grande maioria, capacitistas contra nós e, nesse contexto, tendo atitudes que se contradizem com seus próprios princípios éticos e políticos antiopressão.

Assim como já se combate os esquerdomachos, os LGBTfóbicos e a mentalidade colonizada, é mais que necessário se começar a enfrentar também as posturas de discriminação e preconceito contra autistas nos ambientes de reunião, organização e interação social progressistas.

Isso é essencial para que muitos de nós sejam salvos de ter uma imagem péssima e traumática das esquerdas e adotarem posturas conservadoras e individualistas que, no final das contas, prejudicam as condições de vida da maioria da população neurodivergente e podem se voltar contra eles mesmos.

Fica então a demanda para que a esquerda libertadora se torne ainda mais coerente e se desfaça de uma das suas contradições de atitude pública emancipatória versus comportamento individual opressor menos percebidas da atualidade.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Cripface: quando atores neurotípicos interpretam autistas estereotipados

Descrição da imagem #PraCegoVer: Imagem do trailer do filme "Music" da cantora Sia. Ela exibe a personagem autista Music vestida com camiseta caminhando com um headphone e com expressão facial alegre e relaxada, atrás de duas pessoas que aparecem desfocadas e com os rostos cortados. Fim da descrição.
Imagem do trailer do filme "Music" da cantora Sia

Editado e republicado em 22/12/2022, com a correção do conceito de cripface

Entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2021, a cantora Sia revoltou a comunidade autista ao anunciar o filme Music, que conta a história de uma menina autista não oralizada.

Os motivos foram o emprego da neurotípica Maddie Ziegler, ao invés de uma autista, para fazer esse papel, a forma estereotipada com que os autistas são representados no filme e a reação odiosa e insultuosa da musicista e diretora às críticas da comunidade autista.

O caso desse filme trouxe à tona um debate muito importante dos movimentos das pessoas com deficiência: a ocorrência do cripface em filmes, séries, novelas e peças teatrais.

O que é esse tal de cripface? E por que ele causa tanto repúdio entre a população autista? Este artigo vai apresentar a você esse conceito que poucos hoje conhecem fora do ativismo anticapacitista.

O que é o cripface?

O cripface é quando atrizes e atores sem deficiência são contratados para interpretar personagens com deficiência e, na atuação, "imitam" a deficiência de maneira que parece estar zombando das pessoas com aquele tipo de condição.

No caso do autismo, ocorre quando um(a) neurotípico(a) é escolhido(a) para interpretar um(a) autista e mimetiza as características da condição de maneira exagerada e baseada em estereótipos.

O nome cripface é uma junção de crippled (sinônimo de disabled, pessoa com deficiência em inglês) e face (rosto, face). Remete ao blackface, o condenável ato de pessoas brancas, na tentativa de imitar pessoas negras, pintarem o rosto de preto e, no caso de performances artísticas, mimetizarem estereótipos racistas.

Alguns exemplos de dramatizações acusadas de cripface, além de Music, são a novela Amor à Vida (2013), o seriado Atypical (2017) e o filme Rain Man (1988).

Os problemas que muitas vezes acontecem quando personagens autistas são desenhados por roteiristas neurotípicos e interpretados por atores idem

Foto do personagem Sam Gardner, um rapaz branco autista de cabelo curto vestido com camisa de botões azul, com mochila nas costas e com um abafador de ruídos repousando no pescoço, aparecendo do peitoral para cima, sobre um plano de fundo de escola de ensino médio com armários para estudantes
Sam Gardner de Atypical, exemplo de personagem autista acusado de representar, em alguma medida, o cripface (Foto: Divulgação)

O primeiro problema do cripface ocorre a partir do momento em que uma pessoa neurotípica é chamada para fazer o papel de uma autista.

Quando isso acontece, uma atriz ou ator autista deixa de ser contratado para esse fim. Com isso, o grave problema da sub-representação de autistas e demais PCDs nas telas é perpetuado. 

Para você ter uma ideia, segundo o The Annenberg Inclusion Initiative, apenas 2,7% dos personagens dos 100 filmes de maior bilheteria de 2016, não incluindo figurantes, tinham alguma deficiência. E dentro desse pequeno percentual, apenas 5% deles eram interpretados por atores realmente com deficiência.

Ou seja, apenas 1 em cada 1000 personagens de filmes é interpretado por uma PCD. Uma sub-representação absurda!

O segundo grande problema é quando os produtores, roteiristas, diretores e atores, todos neurotípicos, fazem uma retratação errônea e cheia de estereótipos sobre como um autista vive e se comporta.

O autista geralmente é mostrado como um personagem branco cisgênero - majoritariamente do gênero masculino -, um “grande gênio”, com stims caóticos, infantilizado, cheio de comportamentos “esquisitos demais” (como chamar palavrões compulsivamente em público), exageradamente excêntrico, entre outros.

Para desempenhar o papel de autista, o ator ou atriz neurotípica faz literais mímicas que tentam simular, por exemplo, os stims, o sofrimento de sobrecarga sensorial, comportamentos autísticos diversos etc.

Por não ser autista, dificilmente ele(a) consegue fazer tudo isso de maneira realmente fiel ao comportamento real das pessoas neurodivergentes. Além disso, o uso de mímicas para imitar autistas é considerado pela comunidade autista algo muito desrespeitoso e capacitista.

Em outras palavras, segundo diz a ativista autista Ellen Jones no site do jornal The Guardian, “o que estamos vendo na mídia mainstream não é um reflexo verdadeiro do autismo. Estamos, ao invés, vendo o que os neurotípicos acham que o autismo é”.

O caso do filme Music

A personagem Music, do repudiado filme homônimo, exibe vários estereótipos autísticos:

  • É descrita como alguém que vê o mundo de maneira “completamente diferente” da dos neurotípicos;
  • Seus traços autísticos são sempre exagerados, não correspondendo aos da maioria dos autistas - incluindo os de níveis 2 e 3;
  • Comporta-se de maneira sempre muito infantilizada mesmo já sendo uma adolescente;
  • Diz apenas frases básicas através do dispositivo de comunicação alternativa (como “Eu estou triste” e “Eu estou feliz”);
  • Exibe-se como uma pessoa extremamente excêntrica o tempo todo.

O filme Music leva a concepção preconceituosa do autismo por cineastas neurotípicos a níveis ainda mais absurdos quando sabemos que:

Com isso, Music traz um exemplo muito agressivo de cripface. O menos mal é que a péssima repercussão do trailer do filme e da atitude odiosa de Sia contra seus críticos fortaleceu o debate sobre o problema e, por tabela, despertou ainda mais a força do movimento autista.

Outro acontecimento reconfortante para a comunidade autista é que o filme foi tão mal recebido que ganhou três prêmios Framboesa de Ouro, dados aos piores filmes do ano em diversas modalidades, em 2021.

Conclusão

O cripface, sendo uma forma de discriminação contra autistas e fomento de crenças capacitistas, é um problema sério que precisa ser (re)conhecido e combatido pela sociedade.

Os estúdios precisam ouvir de verdade a população autista - juntamente com as demais pessoas com deficiência. É necessário que tomem consciência do problema da sub-representação dos autistas, revejam o emprego de atores neurotípicos para "imitar" autistas e, finalmente, incluam atores neurodivergentes que interpretem personagens com as mesmas condições.

As estatísticas e costumes vergonhosos que atestam o capacitismo generalizado no cinema e na teledramaturgia precisam virar coisa do passado. Queremos mais representações autênticas do autismo por autistas nas telas e palcos!

terça-feira, 28 de julho de 2020

Por que é preciso abandonar a classificação de autistas por “funcionamento” ou “severidade”

Descrição da imagem #PraCegoVer: No lado superior, estão a expressão "Níveis dos graus" e um gráfico com uma linha em sentido crescente e três divisões intituladas "grau leve", com uma estrela amarela menor, "grau moderado", com uma estrela laranja de tamanho médio, e "grau severo", com uma estrela vermelha maior. Na metade inferior, está a frase "Por que criticamos as classificações do autismo por funcionamento ou severidade". Fim da descrição.

Editado em 23/12/2022

Duas formas muito comuns de se categorizar e diferenciar os autistas são por “funcionamento”“severidade” do autismo.

Só que ambas estão sendo cada vez mais criticadas e rejeitadas pela comunidade autista, que defende o reconhecimento da sua substituição pelo parâmetro oficial vigente.

Saiba, neste artigo, por que um número crescente de neurodivergentes se posiciona contra rótulos como “autista de alto funcionamento” e “autismo severo” e que classificação vigente é essa que apoiamos ao invés.

Os problemas de rotular por “funcionamento”

Um alvo comum da nossa crítica como autistas é o costume de se falar que alguém é autista de “baixo” ou “alto funcionamento”, “funcionalidade” ou “desempenho”. Existem vários motivos pelos quais somos tão contrários a esse tipo de rotulação.

O primeiro é que ele, por um lado, impõe aos autistas ditos “de alto funcionamento” expectativas elevadas demais - entre elas a de que se comportem como se fossem neurotípicos - e lhes subestima ou ignora as dificuldades e limitações.

E pelo outro, minimiza as reais capacidades e potenciais dos considerados de “médio” ou “baixo funcionamento”. 

Induz que as outras pessoas esperem de menos deles e acreditem que eles são “incapazes” de, por exemplo, se comunicar bem - sobretudo por ferramentas alternativas - ou produzir notáveis feitos intelectuais.

Além disso, desconsidera que muitos autistas variam no “nível de funcionamento”. 

Por exemplo, um autista pode ser de “alto funcionamento” quando recebe a devida assistência inclusiva, produzindo, por exemplo, ótimas pesquisas acadêmicas.

Mas pode se tornar temporariamente alguém que considerariam de “baixa funcionalidade” quando está sobrecarregado ou submetido a maus tratos ou estímulos sensoriais nocivos, não conseguindo falar, se locomover com precisão ou manifestar ideias compreensivelmente.

Também pode acontecer de um autista como Naoki Higashida, tido por muitos como de “baixo funcionamento”, escrever um livro bem-sucedido [link afiliado] e se expressar bem com recursos de comunicação alternativa, ao mesmo tempo que precisa de ajuda para, por exemplo, comer, urinar, defecar, tomar banho e trocar de roupa.

Outro motivo é o caráter objetificador do próprio termo “funcionamento”. Afinal, quando rotulam o indivíduo com essa classificação, parecem estar comparando-o com uma máquina que pode estar ou “funcionando muito bem”, ou “defeituosa”, “quebrada”.

A crítica à classificação do autismo como “leve”, “moderado” ou “severo”

A categorização do autismo e dos autistas por “severidade” também está sendo cada vez mais rejeitada.

Um dos motivos é que dizer que o autismo é “leve”, “moderado” ou “severo” é abordá-lo como se fosse algo comparável a uma doença ou problema.

Afinal, o que se considera “brando” ou “grave” geralmente é uma patologia, não uma deficiência. Essa rotulação deriva diretamente da triste tradição da patologização do autismo pela comunidade médica e neurocientífica.

Outra razão é que, ao contrário do que muitos pensam, não existe nenhuma classificação oficial do autismo por “gravidade”. Ou seja, essa rotulação não consta nem no CID (Código Internacional de Doenças e Transtornos), nem no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).

Aliás, a categorização feita por esse segundo manual desde 2013 é a que tem sido defendida como a mais correta, ética e útil para os autistas.

O que é defendido para substituir essas duas rotulações

Descrição da imagem #PraCegoVer: Do lado esquerdo, a palavra autismo em caixa-alta. Do lado direito, as três classificações mais comuns de autismo, que dizem "de baixo, médio ou alto funcionamento", "leve, moderado ou severo" e "por necessidade de apoio". As duas primeiras aparecem riscadas com X, enquanto só a última aparece sem nenhum risco. Fim da descrição.

A tipificação feita pelo DSM-5, a qual nós apoiamos no lugar das outras mencionadas, é o nível de necessidade de suporte.

Por meio dela, os autistas tradicionalmente rotulados como “leves”, “de alto funcionamento” ou “aspies” são autistas de nível 1 de suporte, que precisam de algum apoio para as suas necessidades.

Os antes considerados “moderados” ou “de médio funcionamento” são de nível 2, que precisam de apoio substancial, mais intensivo do que os do primeiro nível.

E os que eram chamados de “severos” ou “de baixo funcionamento” são de nível 3, que necessitam de apoio muito substancial, mais constante do que os dos dois outros níveis.

A classificação por necessidade de suporte é muito mais voltada para a nossa qualidade de vida e felicidade do que as por “severidade” ou “funcionamento”. 

Essas últimas, pelo contrário, costumam ser focadas no quanto o autismo, segundo o olhar capacitista, nos “prejudica”, “incapacita” e torna “menos” ou “mais autistas” e mais ou menos “próximos” do padrão neurotípico.

Ou seja, a primeira foca em nós e no que precisamos para viver bem, enquanto as outras só vislumbram a condição em si, de maneira pejorativa, como se ela fosse uma patologia e demandasse tratamentos para ser minimizada.

Conclusão

Se você ainda rotula cada um de nós autistas como mais ou menos “funcionais” ou “severos”, convidamos você a substituir essas classificações pela que leva em consideração o nosso nível individual de necessidade de apoio.

Essa é a única que realmente nos beneficia, ao invés de focar no quanto nossa neurodivergência é mais ou menos “grave” e “prejudicial” para nós. Portanto, a única que não incorre numa visão capacitista de quem somos.

Mudando a forma de nos categorizar em função do autismo, você muda uma parte da maneira como nos vê e nos trata e, por tabela, diminui o capacitismo dessa sociedade que reluta em nos aceitar, nos incluir e nos tratar bem.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Por que e como promover conscientização do autismo sem demonizá-lo

Descrição da imagem #PraCegoVer: A imagem contém um print, contornado com moldura branca, com duas frases que dizem "Você sabia que o autismo é uma síndrome que atinge 2 milhões de brasileiros?" e "Você sabia que o autismo em crianças (sic) é mais comum do que o câncer, a AIDS e o diabetes?". Abaixo do print está escrito "Conscientização que fala do autismo como se fosse doença: você não deveria fazer isso". Fim da descrição.

Editado em 26/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo menciona capacitismo e, em um trecho, transtornos mentais, sofrimento psíquico e suicídio. Continue lendo-o apenas se tiver certeza de que não sofrerá gatilhos desses problemas.

Algo chato infelizmente ainda é comum - embora, felizmente, cada vez mais difícil de se ver - quando chegam os dias 2 de abril (Dia Mundial da Conscientização do Autismo) e 18 de fevereiro (Dia Mundial da antiga Síndrome de Asperger).

É o ato de neurotípicos de promover “conscientização do autismo” abordando-o como se fosse um transtorno mental patológico, quando não uma doença cerebral.

Falam dele como algo que tornaria os autistas menos capazes e saudáveis do que os neurotípicos e assim deveria ser combatido ou, no mínimo, controlado tal como uma depressão ou esquizofrenia.

Não é de surpreender que a comunidade autista fique indignada e, em muitos casos, responda a esses “conscientizadores” por que eles estão fazendo mais mal do que bem e, assim, prejudicando a categoria que dizem estar defendendo.

Diante disso, existe uma necessidade cada vez mais visível: que a “conscientização” que demoniza o autismo seja progressivamente abandonada e substituída por uma que foque na aceitação da condição e nas necessidades e demandas sociais e políticas dos autistas.

É em prol desse novo paradigma que eu escrevo este artigo. Quero mostrar aqui por que, se você ainda fala da nossa neurodivergência como uma patologia, precisa rever essa abordagem preconceituosa e suplantá-la com uma que aceite, respeite e beneficie a neurodiversidade.

Por que o atual modelo hegemônico de “conscientização do autismo” é tão repudiado pelos autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Print de slide de Powerpoint no qual se exibe um símbolo de laço com peças coloridas de quebra-cabeça e está escrito "Autismo: a fita feita de peças de quebra-cabeça, representando o mistério (sic) e a complexidade dessa patologia (sic), é um símbolo mundial da conscientização em relação ao autismo". No rodapé, abaixo do print, está escrito "Ao falar do autismo como patologia e mistério, você ajuda a perpetuar o preconceito contra autistas!". Fim da descrição.

Antes de falar como conscientizar sem patologizar o autismo, eu quero responder à dúvida que, acredito eu, você tem neste momento: por que essa mudança é tão cobrada por nós autistas?

Razão 1: falar do autismo como doença ou transtorno patológico é fazer uma caracterização falsa e preconceituosa dele

Em primeiro lugar, essa abordagem parte de pressupostos falsos. Afinal, o espectro autista, apesar de ter “Transtorno” no nome oficial, não se encaixa nos parâmetros conceituais de uma doença ou um transtorno patológico.

Ao contrário das patologias, essa condição, longe de ser uma alteração nociva causada por um agente patogênico, é uma forma de organização cerebral geneticamente determinada com a qual nós autistas nascemos, crescemos, amadurecemos e morremos.

Ela não nos tolhe a saúde por si só. É necessário sofrermos abusos psicológicos, sermos expostos a estímulos sensoriais que nos sejam muito fortes ou gatilhos de sofrimento mental e consumirmos alimentos aos quais nossos organismos sejam intolerantes para adoecermos e sofrermos na condição de autistas.

Se nosso jeito de ser e nossas necessidades forem devidamente respeitados, é muito menos provável que manifestemos esse sofrimento. Ou seja, mesmo que o autismo nos deixe mais sensível a determinados fatores, ele sozinho não pode nos debilitar.

Outra diferença importante entre o autismo e as doenças é que ele nos proporciona não só dificuldades como as de entender linguagem não verbal e se socializar e a eventual propensão à ansiedade e irritabilidade, mas também traços de personalidade e comportamentos neutros e positivos.

Por exemplo, um autista é mais provável de ser inteligente (quando não tem deficiência intelectual como condição coexistente), adepto de um ou mais interesses especiais nos quais ele se hiperfoca e se especializa formidavelmente, muito fiel aos seus eventuais amigos, empático, carinhoso, avesso a conflitos e brigas, desejoso de uma vida pacífica etc. do que o neurotípico médio.

Já entre os aspectos neutros, incluem-se, entre outros:

  • A obtenção de prazer e regulação emocional por meio dos movimentos repetitivos conhecidos como stims;
  • O senso de humor excêntrico e inconvencional;
  • O gosto por uma vida organizada e ordeira - o que, a saber, não tem nada a ver com conservadorismo político;
  • A quietude - quando não somos submetidos a estímulos negativos;
  • A probabilidade maior de ser LGBTQIAP+ do que os neurotípicos etc.

Ou seja, falar do autismo como algo que debilita o indivíduo, só tem características negativas e contra o qual a sociedade necessita lutar é manifestar crenças erradas e preconceituosas sobre a nossa neurodivergência.

Razão 2: a “conscientização” patologizante não ajuda em nada os autistas. Pelo contrário, piora a nossa qualidade de vida e mantém nossa exclusão

Quando falam do autismo como algo inerentemente ruim a ser minimizado ou eliminado ao invés de uma parte essencial daquilo que somos, os “conscientizadores” trazem não benefícios, mas sim prejuízos sérios para as nossas vidas.

Ao falar assim da condição, deixam a entender que o problema que nos faz sofrer é ela. E não:

  • A discriminação e os abusos que sofremos;
  • A carência de políticas de inclusão consistentes;
  • A raridade e inacessibilidade das terapias que nos proveem qualidade de vida sem tentar mudar nosso funcionamento e jeito de ser;
  • O excesso de estímulos sensoriais nas cidades;
  • Os métodos de ensino conservadores que não contemplam nossas necessidades específicas etc.

Por causa disso, a “conscientização do autismo” que prega a rejeição e “conserto” da nossa estrutura cerebral autística deixa de focar naquilo que realmente nos faria ter vidas muito melhores e mais felizes.

Negligencia o enfrentamento de todos esses problemas que nos causam sofrimento, isolamento forçado e adoecimento.

Ao adotar esse foco errado, ela deixa do jeito que está toda a estrutura de opressão contra nós. Nos condena à perpétua desassistência e à privação de direitos.

Além disso, quando trata o autismo como algo indesejável, essa abordagem nos impõe terapias de “conversão” à neurotipia e legitima exigências de comportamento social que, por mais que tentemos, geralmente não conseguimos atender.

Essas tentativas não nos proporcionam a aceitação em círculos de amigos, no mercado de trabalho, no sistema de ensino, na cultura vigente etc. Pelo contrário, continuamos sendo duramente reprimidos, discriminados e até agredidos.

Por causa desse fracasso e do esforço mental insustentável que empreendemos para tentar nos comportar do jeito que os neurotípicos querem, somos condenados a sofrer meltdowns, shutdowns e burnouts autísticos frequentes.

Também acabamos tendo severos transtornos patológicos, como ansiedade, depressão, síndrome do pânico e até impulsos suicidas - problemas que, inclusive, muitos “conscientizadores” atribuem erroneamente ao autismo em si como “sintomas”. E muitos autistas sucumbem diante disso e tiram a própria vida.

É isso que a “conscientização” orientada à patologização e “correção” do autismo nos acarreta. Longe de nos ajudar, só realça e conserva a nossa exclusão e sofrimento e os maus tratos contra nós.

Razão 3: esse tipo de “conscientização”, ao invés de esclarecer e educar, incentiva e reforça o preconceito contra os autistas

A “conscientização” patologizante, por convencer as pessoas de que o autismo, e não o capacitismo, é o problema a ser enfrentado e combatido, contribui decisivamente para que a maioria das pessoas continue tendo dolorosos preconceitos contra os autistas e sua condição.

Passa a mensagem de que nós somos “doentes”, “sofredores” e “menos capazes” unicamente por sermos quem somos e nascermos com cérebros diferentes e mais sensíveis do que os dos neurotípicos. E que, por isso, devemos ser “consertados” e “curados”.

Deixa a entender que o mundo seria melhor se nossas personalidades atuais fossem eliminadas da existência e substituídas por mentes “normais”, que lidam menos intensamente com a poluição sensorial da civilização moderna e se comportam das únicas maneiras que os preconceituosos consideram “corretas”.

Com isso, os preconceituosos se veem autorizados a manter toda a opressão contra nós, nos causando os sofrimentos mencionados na razão anterior.

Em outras palavras, momentos como o Dia Mundial da Conscientização do Autismo têm sido usados para desconscientizar as pessoas e mantê-las na ignorância sobre como é ser autista e como os autistas deveriam ser tratados.

Como conscientizar de verdade, sem patologização e desinformação, sobre o autismo

Descrição da imagem #PraCegoVer: A imagem exibe, no seu cabeçalho, o símbolo da neurodiversidade, que é um sinal de infinito (que aparece estilizado na imagem) preenchido com o gradiente do espectro de cores, e a inscrição "18 de junho, Dia do Orgulho Autista, #orgulhoautista". No corpo da imagem está escrito "Neurodiversidade: é um conceito e também um movimento social que busca fazer entender que nenhum modo de ser é errado e que todos têm o direito de serem quem são. #orgulhoautista". No canto inferior direito está a URL da página que criou a imagem: "facebook.com/AUTISMO.BR". Fim da descrição.
Falar do autismo como um jeito de ser dotado de sua própria dignidade e do orgulho autista de ser quem é: essa sim é uma maneira ética e correta de se conscientizar as pessoas sobre o autismo. Imagem: página da Abraça no Facebook

Agora que você tem consciência do quanto é nocivo falar do autismo com aversão, é hora de saber como suplantar esse triste costume com uma conscientização de verdade, focada no entendimento correto e aceitador do autismo e na defesa dos nossos direitos.

O primeiro passo para isso é ouvir e ler os autistas. É saber de nós mesmos como vivemos, como nos sentimos nas mais diversas situações, o que precisamos e reivindicamos, o que temos a falar sobre o capacitismo e o que pode nos fazer ser realmente livres e felizes em meio à sociedade e termos vidas dignas.

“Conscientizar sobre o autismo” sem ouvir os próprios autistas é uma falha grave, que geralmente leva o indivíduo a propagar preconceitos e informações errôneas achando que está mandando bem, proferindo um discurso que, ao invés de nos ajudar, nos oprime ainda mais.

Somente nos ouvindo e lendo nossos conteúdos escritos, você pode entender o que é defender de verdade os autistas - com o cuidado de nunca tentar falar em nosso nome - e apoiar as nossas demandas como minoria política alvo de opressão e exclusão.

Daí, depois que você tiver ouvido e lido o suficiente o público autista, você já poderá dar o segundo passo: conversar com outros neurotípicos orientando-os a desconstruir o capacitismo contra autistas.

É algo semelhante o que os homens pró-feministas fazem em apoio ao feminismo - conversar com outros homens para que revejam o seu machismo - e brancos apoiadores do movimento negro fazem com outros brancos - diálogos que desmontem o seu racismo.

A partir do que aprendeu de nós, você poderá conscientizá-los, por exemplo, a:

  • Deixar de pensar e falar no autismo como se fosse uma doença;
  • Entendê-lo como uma deficiência e diferença natural que, para além das limitações e dificuldades, também implica pontos positivos e deve ser respeitada como tal;
  • Parar com comportamentos discriminatórios e opressores - como maltratar autistas que não entendem regras sociais implícitas, exigir demais deles e cortar laços com aqueles que não se comportam como neurotípicos;
  • Entender as nossas dificuldades em meio a uma sociedade predominantemente neurotípica;
  • Combater o bullying;
  • Adaptar os ambientes retirando os excessos de estímulos sensoriais;
  • Adotar métodos didáticos que acolham as necessidades específicas de aprendizado dos autistas;
  • Apoiar a consolidação do diagnóstico como direito e mais suporte terapêutico, de preferência público e gratuito pelo SUS, a nós;
  • Desmontar todas as barreiras sociais e atitudinais que nos impedem de ser o melhor de nós mesmos etc.

Conclusão

É perfeitamente possível conscientizar as pessoas sobre o autismo sem parecer estar falando de uma doença ou defeito cerebral.

Basta você nos ouvir, nos entender e compartilhar o que falamos para que cada vez mais neurotípicos abandonem o preconceito contra nós e parem de nos cobrar padrões de conduta e desempenho neurotípicos.

Sua atitude de abandonar a abordagem demonizante da condição e substituí-la por uma pró-aceitação e anticapacitista é essencial. 

Com o seu apoio, as datas dedicadas ao autismo no futuro deixarão de ser, para nós, dias de aturar gente preconceituosa que nos vê como doentes, ou como antiéticos que precisam levar esporro ou ser punidos para “se comportar direito”, e gostaria que outras pessoas existissem no nosso lugar.

Ouça-nos mais, e lute junto de nós. Ajude a trazer conscientização que realmente nos faça bem, e não que legitime os preconceitos de quem não nos entende.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Por que a frase “Autismo não é deficiência, é uma habilidade diferente” é enganosa e prejudicial aos autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Uma camiseta preta cuja estampa mostra quatro esqueletos, sendo três brancos eretos e um multicolorido fazendo uma pose de alguém que venceu, e a mensagem criticada "Autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente". Abaixo da estampa, a imagem diz: "Por que o autismo é uma deficiência e esta camiseta promove desinformação e capacitismo". Fim da descrição.
Negação das deficiências dos autistas: nunca vista essa camisa

Atualizado em 28/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo menciona formas de capacitismo e pode reviver lembranças traumáticas do passado em alguns leitores. Prossiga apenas se tiver segurança de que não sofrerá com traumas ao lê-lo.

Muitos neurotípicos, principalmente mães e pais de autistas, na tentativa de empoderar seus filhos ou parentes neurodivergentes, estão compartilhando, inclusive estampada em camisetas, a frase "Autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente".

Preciso dizer que essa mensagem mais atrapalha a nós autistas do que nos ajuda. Ela passa uma imagem totalmente equivocada do que o autismo é e não é e das nossas necessidades e limitações.

Saiba, neste artigo, por que, se você já usou ou ainda usa tal afirmação com boas intenções, precisa rever sua crença nela e aceitar que nós autistas somos pessoas com deficiência.

Ao contrário do que a frase diz, autismo é sim uma deficiência

Em primeiro lugar, preciso dizer: o autismo é uma deficiência, objetivamente falando.

Nós temos deficiência em âmbitos como:

  • A socialização;
  • A comunicação, principalmente a compreensão e uso de linguagem não verbal;
  • O processamento sensorial hiper e hipossensibilidades tátil, auditiva, luminosa, gustativa, olfativa, à dor, a temperaturas quentes ou frias etc.;
  • A regulação das emoções, uma vez que muitos de nós são propensos a picos de raiva, irritabilidade, tristeza, euforia etc. que temos dificuldade de controlar;
  • A coordenação motora.

Além disso, é muito comum autistas terem uma ou mais condições coexistentes, como:

  • TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade);
  • Síndrome de Tourette;
  • Síndrome de Ehlers-Danlos;
  • Dislexia;
  • Discalculia;
  • Prosopagnosia (capacidade baixa ou ausente de reconhecer rostos);
  • TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo);
  • Distúrbios do sono;
  • Epilepsia;
  • Intermitência ou ausência da capacidade de falar;
  • Capacidade baixa ou ausente de perceber necessidades fisiológicas (fome, sede, vontade de urinar ou defecar etc.);
  • No caso de muitos autistas de níveis 2 e 3 de suporte, algum grau de deficiência intelectual.

Isso sem falar que muitos de nós, sobretudo aqueles de níveis 2 e 3, costumam ter dificuldades consideráveis de cuidar de si mesmos e, por isso, necessitam de apoio substancial ou muito substancial.

Tanto é que a Lei Federal nº 12.764/2012 oficializa que nós autistas somos pessoas com deficiência e, portanto, temos os mesmos direitos de qualquer outra pessoa com deficiência.

Também devemos nos lembrar de que a Lei Brasileira de Inclusão (Lei Federal nº 13.146/2015), Artigo 1º, define a pessoa com deficiência como:

aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Nós de fato sofremos com a obstrução de nossa participação na sociedade por barreiras sensoriais e principalmente sociais, como descrevo a seguir.

Nós autistas sofremos com o capacitismo

Outra razão pela qual é nocivo negar a natureza de deficiência do autismo é que nós autistas sofremos preconceito e discriminação capacitistas ao longo de nossas vidas.

Nossas capacidades intelectuais, laborais e emocionais, como as de amar, ter empatia, nos preocupar com o próximo, manifestar senso crítico e trazer contribuições de grande importância para o mundo, são muito comumente subestimadas por neurotípicos preconceituosos.

Somos vistos como “doidos”, “doentes”, “incapazes”, “insensíveis”, “grosseiros”, “arrogantes” e “marionetes dos pais” simplesmente por sermos autistas. 

Somos violentados com bullying, insultos, desincentivos de nossas capacidades, incentivos ao auto-ódio, discriminação em serviços de saúde e outras formas de abuso psicológico ou mesmo violência física.

Muitos de nós são impedidos de se matricular em escolas simplesmente por serem quem são. E mesmo quando a escola ou universidade nos dá “boas vindas”, podemos sair dela com um aprendizado medíocre por causa da ausência de inclusão pedagógica que considere nossas necessidades específicas, sobretudo a de autistas com dupla excepcionalidade (ex.: autistas com TDAH, autistas com altas habilidades, autistas com dislexia).

A maioria das cidades grandes são verdadeiros infernos sensoriais para nós. Em muitos casos, andar de ônibus ou trem lotados nos é uma experiência amargamente traumática. Até pegar um táxi ou Uber pode ser um grande desafio, por envolver alguma interação com o motorista.

O mercado de trabalho nos exclui sistematicamente, nos trata como incapazes e subestima nosso potencial

Infelizmente são raras exceções as empresas que reconhecem e atendem às nossas necessidades específicas, conscientizam seus outros funcionários e nos permitem aproveitar nossos pontos fortes vocacionais.

Dizer que “autismo não é deficiência” implica dizer que autistas não precisam de acessibilidade e inclusão

Além disso, quando alguém diz que autismo não é uma deficiência, acaba insinuando, por tabela, que autistas sem deficiências coexistentes não precisariam de acessibilidade nem inclusão.

Quando alguém acredita que autistas não são pessoas com deficiência, o pensamento dela implica logicamente que nós não precisaríamos de apoios acessíveis como salas livres de excesso de estímulos sensoriais no ENEM e em concursos públicos, transportes com baixo ruído e sessões de cinema adaptadas.

Também crê que não necessitamos de políticas específicas de inclusão e combate ao capacitismo. Nem de direitos, benefícios e políticas afirmativas como o passe livre, os assentos preferenciais no transporte público, as cotas de pessoas com deficiência e o atendimento prioritário.

A crença de que “autismo não é deficiência” invisibiliza os autistas de níveis 2 e 3 de suporte

Dizer que “o autismo não é uma deficiência” implica também invisibilizar os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, cujas deficiências são ainda mais nítidas e óbvias perante a sociedade como um todo.

Autistas dessas categorias, como já foi introduzido mais acima, muitas vezes têm sérias dificuldades de cuidar de si mesmos. 

Comer, vestir-se, fazer xixi e cocô, tomar banho, escovar os dentes, calçar sapatos etc. sozinhos podem ser enormes desafios para aqueles que não tiveram intervenção terapêutica que lhes permitisse desenvolver suficientemente essas habilidades.

Além disso, grande parte dos autistas dessas duas categorias possuem deficiência intelectual e/ou não são oralizados. Isso sem falar nas outras também muito presentes deficiências coexistentes.

Quando alguém vem com a crença de que “autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente”, está invisibilizando perante a sociedade todas essas pessoas e suas dificuldades. 

Está reduzindo todo o espectro e população autistas àquela pequena parcela que possui inteligência mais proeminente e o privilégio de ter acesso amplo às devidas terapias.

Ou seja, essa afirmação é capacitista não apenas por rebaixar as deficiências que os autistas de fato possuem, como também por ignorar e discriminar milhões de autistas de níveis mais substanciais de necessidade de apoio.

Essa crença faz uma falsa e romantizada idealização do que é ser autista

Se por um lado a infame frase invisibiliza e exclui os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, pelo outro ela faz uma idealização falsa, superestimada e romantizada do que é ser autista de nível 1.

Para quem acredita nessa frase, os autistas seriam sempre extraordinariamente inteligentes, superdotados, candidatos a novos Einsteins

O autismo nos seria uma vantagem por nos proporcionar essa suposta superinteligência. Não nos traria grandes dificuldades de viver em meio a uma maioria de neurotípicos e em cidades abarrotadas de estímulos sensoriais.

Diante desse estereótipo positivo, tão nocivo quanto os negativos, preciso esclarecer: se por um lado existem de fato muitos autistas muito inteligentes, por outro essas mesmas pessoas sofrem com todos os já mencionados problemas decorrentes de ser autista numa sociedade de maioria neurotípica e capacitista.

Até poderíamos manifestar notáveis habilidades diferentes se os neurotípicos não nos tratassem com tanto preconceito e exclusão e não nos impusessem tantas barreiras nas instituições de ensino e no mercado de trabalho.

Ser autista de nível 1 de suporte, numa sociedade assim, ao contrário do que a frase deixa a entender, não é nenhuma maravilha - ou pior, em muitas situações pode ser até infernal. Por mais que chamem o autismo de pessoas como eu de “leve”, as nossas dificuldades e sofrimentos não têm nada de leves.

Usar essa frase é confundir deficiência com doença ou incapacidade

Acredito que a pessoa que idealizou tal frase queria dizer que autismo não é uma doença, nem um fardo, nem um fator inferiorizante.

Inclusive tudo me leva a crer que o sentido original pretendido para a frase era que autismo não é uma incapacidade, mas sim uma capacidade diferente. Essa sim seria uma frase anticapacitista e conscientizadora.

Se foi isso mesmo, a frase publicada no lugar, ao escolher as palavras erradas, cometeu um grave erro ao associar deficiência com ser "incapaz" e, assim, passar uma imagem equivocada e preconceituosa tanto do autismo quanto das deficiências humanas em geral.

Provavelmente ela acreditou que, para convencer as pessoas de que autismo não é doença nem incapacidade, teria que negar também sua condição de deficiência. Isso foi uma péssima ideia.

Conclusão

Por todos esses motivos, nós autistas consideramos falsa, preconceituosa, discriminatória e, portanto, seriamente prejudicial a mensagem de que "autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente".

Autismo é uma deficiência e só em uma parcela restrita de casos traz o potencial de desenvolver habilidades diferentes.

As barreiras capacitistas, sensoriais, anti-inclusivas etc. impostas pela sociedade nos inibem de concretizar esse potencial e limitam nossas capacidades.

Quando dizem que o autismo "não é deficiência", apagam todas as dificuldades, as negações ou limitações de acessibilidade, o capacitismo, a exclusão social e os traumas que sofremos por sermos quem somos, além de negarem a existência de uma parcela enorme da população autista.

Então, peço a você: evite promover essa mensagem tão equivocada. Não compactue com desinformação que patologiza as deficiências humanas, invisibiliza nossas atribulações e nega nossas reais necessidades. 

Se você já usou essa imagem, por favor, nunca mais use-a novamente, pelo bem dos autistas.