quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Por que a frase “Autismo não é deficiência, é uma habilidade diferente” é enganosa e prejudicial aos autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Uma camiseta preta cuja estampa mostra quatro esqueletos, sendo três brancos eretos e um multicolorido fazendo uma pose de alguém que venceu, e a mensagem criticada "Autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente". Abaixo da estampa, a imagem diz: "Por que o autismo é uma deficiência e esta camiseta promove desinformação e capacitismo". Fim da descrição.
Negação das deficiências dos autistas: nunca vista essa camisa

Atualizado em 28/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo menciona formas de capacitismo e pode reviver lembranças traumáticas do passado em alguns leitores. Prossiga apenas se tiver segurança de que não sofrerá com traumas ao lê-lo.

Muitos neurotípicos, principalmente mães e pais de autistas, na tentativa de empoderar seus filhos ou parentes neurodivergentes, estão compartilhando, inclusive estampada em camisetas, a frase "Autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente".

Preciso dizer que essa mensagem mais atrapalha a nós autistas do que nos ajuda. Ela passa uma imagem totalmente equivocada do que o autismo é e não é e das nossas necessidades e limitações.

Saiba, neste artigo, por que, se você já usou ou ainda usa tal afirmação com boas intenções, precisa rever sua crença nela e aceitar que nós autistas somos pessoas com deficiência.

Ao contrário do que a frase diz, autismo é sim uma deficiência

Em primeiro lugar, preciso dizer: o autismo é uma deficiência, objetivamente falando.

Nós temos deficiência em âmbitos como:

  • A socialização;
  • A comunicação, principalmente a compreensão e uso de linguagem não verbal;
  • O processamento sensorial hiper e hipossensibilidades tátil, auditiva, luminosa, gustativa, olfativa, à dor, a temperaturas quentes ou frias etc.;
  • A regulação das emoções, uma vez que muitos de nós são propensos a picos de raiva, irritabilidade, tristeza, euforia etc. que temos dificuldade de controlar;
  • A coordenação motora.

Além disso, é muito comum autistas terem uma ou mais condições coexistentes, como:

  • TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade);
  • Síndrome de Tourette;
  • Síndrome de Ehlers-Danlos;
  • Dislexia;
  • Discalculia;
  • Prosopagnosia (capacidade baixa ou ausente de reconhecer rostos);
  • TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo);
  • Distúrbios do sono;
  • Epilepsia;
  • Intermitência ou ausência da capacidade de falar;
  • Capacidade baixa ou ausente de perceber necessidades fisiológicas (fome, sede, vontade de urinar ou defecar etc.);
  • No caso de muitos autistas de níveis 2 e 3 de suporte, algum grau de deficiência intelectual.

Isso sem falar que muitos de nós, sobretudo aqueles de níveis 2 e 3, costumam ter dificuldades consideráveis de cuidar de si mesmos e, por isso, necessitam de apoio substancial ou muito substancial.

Tanto é que a Lei Federal nº 12.764/2012 oficializa que nós autistas somos pessoas com deficiência e, portanto, temos os mesmos direitos de qualquer outra pessoa com deficiência.

Também devemos nos lembrar de que a Lei Brasileira de Inclusão (Lei Federal nº 13.146/2015), Artigo 1º, define a pessoa com deficiência como:

aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Nós de fato sofremos com a obstrução de nossa participação na sociedade por barreiras sensoriais e principalmente sociais, como descrevo a seguir.

Nós autistas sofremos com o capacitismo

Outra razão pela qual é nocivo negar a natureza de deficiência do autismo é que nós autistas sofremos preconceito e discriminação capacitistas ao longo de nossas vidas.

Nossas capacidades intelectuais, laborais e emocionais, como as de amar, ter empatia, nos preocupar com o próximo, manifestar senso crítico e trazer contribuições de grande importância para o mundo, são muito comumente subestimadas por neurotípicos preconceituosos.

Somos vistos como “doidos”, “doentes”, “incapazes”, “insensíveis”, “grosseiros”, “arrogantes” e “marionetes dos pais” simplesmente por sermos autistas. 

Somos violentados com bullying, insultos, desincentivos de nossas capacidades, incentivos ao auto-ódio, discriminação em serviços de saúde e outras formas de abuso psicológico ou mesmo violência física.

Muitos de nós são impedidos de se matricular em escolas simplesmente por serem quem são. E mesmo quando a escola ou universidade nos dá “boas vindas”, podemos sair dela com um aprendizado medíocre por causa da ausência de inclusão pedagógica que considere nossas necessidades específicas, sobretudo a de autistas com dupla excepcionalidade (ex.: autistas com TDAH, autistas com altas habilidades, autistas com dislexia).

A maioria das cidades grandes são verdadeiros infernos sensoriais para nós. Em muitos casos, andar de ônibus ou trem lotados nos é uma experiência amargamente traumática. Até pegar um táxi ou Uber pode ser um grande desafio, por envolver alguma interação com o motorista.

O mercado de trabalho nos exclui sistematicamente, nos trata como incapazes e subestima nosso potencial

Infelizmente são raras exceções as empresas que reconhecem e atendem às nossas necessidades específicas, conscientizam seus outros funcionários e nos permitem aproveitar nossos pontos fortes vocacionais.

Dizer que “autismo não é deficiência” implica dizer que autistas não precisam de acessibilidade e inclusão

Além disso, quando alguém diz que autismo não é uma deficiência, acaba insinuando, por tabela, que autistas sem deficiências coexistentes não precisariam de acessibilidade nem inclusão.

Quando alguém acredita que autistas não são pessoas com deficiência, o pensamento dela implica logicamente que nós não precisaríamos de apoios acessíveis como salas livres de excesso de estímulos sensoriais no ENEM e em concursos públicos, transportes com baixo ruído e sessões de cinema adaptadas.

Também crê que não necessitamos de políticas específicas de inclusão e combate ao capacitismo. Nem de direitos, benefícios e políticas afirmativas como o passe livre, os assentos preferenciais no transporte público, as cotas de pessoas com deficiência e o atendimento prioritário.

A crença de que “autismo não é deficiência” invisibiliza os autistas de níveis 2 e 3 de suporte

Dizer que “o autismo não é uma deficiência” implica também invisibilizar os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, cujas deficiências são ainda mais nítidas e óbvias perante a sociedade como um todo.

Autistas dessas categorias, como já foi introduzido mais acima, muitas vezes têm sérias dificuldades de cuidar de si mesmos. 

Comer, vestir-se, fazer xixi e cocô, tomar banho, escovar os dentes, calçar sapatos etc. sozinhos podem ser enormes desafios para aqueles que não tiveram intervenção terapêutica que lhes permitisse desenvolver suficientemente essas habilidades.

Além disso, grande parte dos autistas dessas duas categorias possuem deficiência intelectual e/ou não são oralizados. Isso sem falar nas outras também muito presentes deficiências coexistentes.

Quando alguém vem com a crença de que “autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente”, está invisibilizando perante a sociedade todas essas pessoas e suas dificuldades. 

Está reduzindo todo o espectro e população autistas àquela pequena parcela que possui inteligência mais proeminente e o privilégio de ter acesso amplo às devidas terapias.

Ou seja, essa afirmação é capacitista não apenas por rebaixar as deficiências que os autistas de fato possuem, como também por ignorar e discriminar milhões de autistas de níveis mais substanciais de necessidade de apoio.

Essa crença faz uma falsa e romantizada idealização do que é ser autista

Se por um lado a infame frase invisibiliza e exclui os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, pelo outro ela faz uma idealização falsa, superestimada e romantizada do que é ser autista de nível 1.

Para quem acredita nessa frase, os autistas seriam sempre extraordinariamente inteligentes, superdotados, candidatos a novos Einsteins

O autismo nos seria uma vantagem por nos proporcionar essa suposta superinteligência. Não nos traria grandes dificuldades de viver em meio a uma maioria de neurotípicos e em cidades abarrotadas de estímulos sensoriais.

Diante desse estereótipo positivo, tão nocivo quanto os negativos, preciso esclarecer: se por um lado existem de fato muitos autistas muito inteligentes, por outro essas mesmas pessoas sofrem com todos os já mencionados problemas decorrentes de ser autista numa sociedade de maioria neurotípica e capacitista.

Até poderíamos manifestar notáveis habilidades diferentes se os neurotípicos não nos tratassem com tanto preconceito e exclusão e não nos impusessem tantas barreiras nas instituições de ensino e no mercado de trabalho.

Ser autista de nível 1 de suporte, numa sociedade assim, ao contrário do que a frase deixa a entender, não é nenhuma maravilha - ou pior, em muitas situações pode ser até infernal. Por mais que chamem o autismo de pessoas como eu de “leve”, as nossas dificuldades e sofrimentos não têm nada de leves.

Usar essa frase é confundir deficiência com doença ou incapacidade

Acredito que a pessoa que idealizou tal frase queria dizer que autismo não é uma doença, nem um fardo, nem um fator inferiorizante.

Inclusive tudo me leva a crer que o sentido original pretendido para a frase era que autismo não é uma incapacidade, mas sim uma capacidade diferente. Essa sim seria uma frase anticapacitista e conscientizadora.

Se foi isso mesmo, a frase publicada no lugar, ao escolher as palavras erradas, cometeu um grave erro ao associar deficiência com ser "incapaz" e, assim, passar uma imagem equivocada e preconceituosa tanto do autismo quanto das deficiências humanas em geral.

Provavelmente ela acreditou que, para convencer as pessoas de que autismo não é doença nem incapacidade, teria que negar também sua condição de deficiência. Isso foi uma péssima ideia.

Conclusão

Por todos esses motivos, nós autistas consideramos falsa, preconceituosa, discriminatória e, portanto, seriamente prejudicial a mensagem de que "autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente".

Autismo é uma deficiência e só em uma parcela restrita de casos traz o potencial de desenvolver habilidades diferentes.

As barreiras capacitistas, sensoriais, anti-inclusivas etc. impostas pela sociedade nos inibem de concretizar esse potencial e limitam nossas capacidades.

Quando dizem que o autismo "não é deficiência", apagam todas as dificuldades, as negações ou limitações de acessibilidade, o capacitismo, a exclusão social e os traumas que sofremos por sermos quem somos, além de negarem a existência de uma parcela enorme da população autista.

Então, peço a você: evite promover essa mensagem tão equivocada. Não compactue com desinformação que patologiza as deficiências humanas, invisibiliza nossas atribulações e nega nossas reais necessidades. 

Se você já usou essa imagem, por favor, nunca mais use-a novamente, pelo bem dos autistas.

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