quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Por que cada vez mais autistas rejeitam os termos “Síndrome de Asperger” e “aspie”

Descrição da imagem #PraCegoVer: A expressão Síndrome de Asperger aparece em destaque riscada com um grande X vermelho. Embaixo dela, está o título Por que cada vez mais autistas estão abandonando e rejeitando o termo "Síndrome de Asperger". Fim da descrição.


Editado e atualizado em 14/12/2022

Uma tendência tem sido vista desde o final da década de 2010: cada vez mais autistas estão abandonando o termo “Síndrome de Asperger” para se referir ao autismo de nível 1 de suporte e a identidade social “aspie”.

Um após o outro, perfis e páginas de redes sociais, sites e canais de vídeos administrados por autistas têm retirado de seus nomes as referências à terminologia e substituído pelos termos “autista” e “autie”.

Se você ainda não sabe por que tanta gente está rejeitando-os, saiba aqui neste artigo. Você também terá a oportunidade de deixar você mesmo(a) de utilizá-los e preferir se referir aos autistas de nível 1 como autistas mesmo.

Os vários porquês da queda em desuso dos termos

Tenho percebido que esse abandono, que já estava acontecendo desde a publicação do DSM-5, acelerou desde 2019 ou os primeiros meses de 2020.

São várias as razões, a seguir.

1. O DSM-V e o CID-11 tornaram o diagnóstico de “Síndrome de Asperger” obsoleto

Em 2013, o DSM-V abandonou o diagnóstico de Síndrome de Asperger, ao unificar todas as condições então associadas ao autismo (exceto a Síndrome de Rett) no “Transtorno” do Espectro Autista (TEA).

Ao invés de um conjunto de condições relacionadas, o espectro autista passou a ser um diagnóstico só, diferenciado internamente apenas pelo grau de necessidade de apoio - o qual muita gente ainda confunde com os de “severidade” e “funcionamento”.

Porém, a terminologia inspirada em Hans Asperger ainda sobreviveu por mais oito anos por causa da vigência do CID-10. Até dezembro de 2021, ela ainda era usada por psiquiatras nos países em que o Código Internacional de Doenças* é usado para condições psiquiátricas.

A partir de janeiro de 2022, entrou em vigor o sucessor CID-11. Ele acompanhou o DSM-V e também unificou todas as condições autísticas no TEA. Nesse meio, substituiu a “Síndrome de Asperger” (código F84.5 no CID-10) pelo “Transtorno” do Espectro do Autismo sem deficiência intelectual (DI) e com comprometimento leve ou ausente da linguagem funcional, de código 6A02.0.

Com os profissionais de saúde mental e neurológica aderindo ao CID-11 e deixando para sempre de usar o termo em questão, não faz mais sentido continuar usando-o como um “tipo de autismo”.

*Apesar de o autismo constar no intitulado Código Internacional de Doenças, ele não é uma doença. Condições mentais não patológicas também são abrangidas pelo CID.

2. O livro Crianças de Asperger denuncia o sombrio porquê de “aspies” terem sido clinicamente diferenciados dos demais autistas

Crianças de Asperger [link afiliado] conta uma parte importante da história inicial do autismo, quando foi diagnosticado e descrito pelos austríacos Leo Kanner e Hans Asperger no contexto do regime de terror nazista.

Entre as revelações do livro, está o porquê de Asperger ter diferenciado as crianças que hoje consideramos autistas de nível 1 das de outros níveis de suporte: ele estava rotulando os pequenos autistas sob a ótica da “serventia” dos indivíduos para o regime totalitário então em vigor.

Assim, as primeiras, consideradas de “alto funcionamento”, seriam poupadas, e as últimas, tachadas como de “baixo funcionamento”, enviadas para a morte.

Existe toda uma controvérsia sobre a conduta de Asperger, se ele estava tentando salvar parte das crianças da execução ou se sua postura, de designar aquelas com maiores limitações para serem mortas pela máquina de extermínio do nazismo, era da vontade própria dele e refletia um apoio individual ao mesmo.

Mas um fato tem sobressaído: ele era um nazista e participou do assassinato de crianças. Essa constatação iniciou a crescente rejeição ético-moral do diagnóstico de “Síndrome de Asperger” e da identidade social “aspie”.

O resultado foi que o processo de abandono dessas terminologias se acelerou ainda mais desde o lançamento do livro.

Um exemplo de como a diferenciação da "Síndrome de Asperger" em contraste com o restante do espectro autista dá margem a uma visão equivocada e estereotipada sobre como é ser um "aspie", incluindo a de não ser um "autista de verdade"

3. Não existe nenhum critério relevante para diferenciar “aspies” de autistas nível 1 “não aspies”

Sempre houve fortes dúvidas sobre que sentido fazia diferenciar a “Síndrome de Asperger” do “autismo de alto funcionamento” (AAF), ou mesmo se ambos representavam ou não a mesma condição autística.

Isso se dava porque nunca existiram diferenças relevantes entre os “aspies” e os autistas “leves” “não aspies”. As mais disseminadas eram a idade em que a pessoa começou a falar e o seu nível de inteligência.

Para muitas pessoas, se a pessoa começou a falar na idade típica, em torno de 1 ano, e tem inteligência acima da média, é “aspie”; se aprendeu a falar com atraso e tem inteligência apenas moderada, não seria “aspie”, mas sim AAF.

O problema é que existem muitos autistas que ficam no meio-termo entre ser “aspie” ou de “alto funcionamento”. 

No meu caso específico mesmo, eu aprendi a falar aos 3 anos e 2 meses de idade. Mas com essa única exceção, tenho todas as características da “síndrome”, além de ter sido diagnosticado superdotado aos 4 anos. Ou seja, fiquei no limite entre o “aspie” e o AAF.

Além disso, ambas as diferenças são muito subjetivas. Em relação ao atraso do começo da fala, nunca se especificou de quantos anos ele teria que ser - se a criança, se falou só a partir dos 3 anos, como no meu exemplo, era invariavelmente considerada AAF ou poderia ser sim diagnosticada “aspie”.

E quanto à inteligência, nunca se mencionou quais parâmetros a definem. Um autista com conhecimentos extremamente avançados em futebol ou ficção nerd e dificuldade de entender Matemática e Lógica, mas sem deficiência intelectual, seria considerada inteligente a ponto de ser rotulado como “aspie”? Ou teria um “QI médio ou baixo” e seria lido como AAF?

Tanto não há uma diferenciação objetiva relevante entre ambas as condições que elas foram unificadas pelo DSM-5 e pelo CID-11. “Aspies” e AAFs são hoje simplesmente autistas de nível 1 de suporte - também conhecidos, na antiga categorização popular por “severidade”, como “autistas leves”.

4. A diferenciação entre “aspies” e autistas “não aspies” favorece a discriminação capacitista

Um sério problema de âmbito ético em se distinguir “aspies” de autistas “não aspies” é que isso criou uma hierarquização moral entre os autistas, aos olhos tanto de muitos neurotípicos quanto aos de alguns “aspies” que reproduzem capacitismo.

Nessa hierarquia, os “aspies” são vistos como a “elite” dos autistas. São tratados como se fossem os mais “capazes”, inteligentes e habilidosos do espectro e tivessem até alguns “poderes” superiores aos dos neurotípicos.

E dentro dessa “elite”, os “aspies” superdotados - ou seja, com dupla excepcionalidade - são postos no topo e aclamados como correspondentes ao estereótipo do gênio tímido excêntrico e pouco sociável.

Enquanto isso, os AAF e os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, com inteligência considerada “média” ou deficiência intelectual, ficam numa posição mais “baixa”

São tidos como intelectualmente “inferiores” e, portanto, “menos capazes” ou mesmo “incapazes”. Têm seus verdadeiros potenciais, habilidades, capacidades e demandas ignorados e desvalorizados.

Isso dá margem a um triste costume de discriminação, inclusive dentro da própria comunidade autista. 

Os neurotípicos tendem a ter muita admiração - muito hipócrita, por sinal - pelas habilidades que muitos “aspies” demonstram, em especial os duplo-excepcionais, enquanto o que dedicam aos “não aspies” é pena, subestimação das capacidades e desejo de “curar” ou “consertar”.

Já os “aspies” com capacitismo internalizado, em especial os politicamente de direita, acabam achando a si mesmos “superiores” aos demais autistas, mais merecedores do sucesso e da felicidade, e tratando de maneira preconceituosa os demais integrantes do espectro.

5. Essa distinção prejudica os próprios “aspies”

Essa hierarquização entre “aspies”, AAFs e autistas de níveis 2 e 3 não prejudica somente os inferiorizados, mas também aos próprios “aspies”.

Por serem os mais notados como “habilidosos” e de “grande potencial”, são vistos como “menos autistas” do que o restante do espectro. Por causa disso, sofrem mais cobrança e pressão da sociedade para se comportarem igual aos neurotípicos.

Sempre que não conseguem cumprir essas expectativas, são vistos como “esquisitos”, “mal educados”, “grosseiros”, “mal comportados” e tratados de maneira hostil e capacitista.

Além disso, os mesmos que os tacham de “gênios esquisitos” e não os veem como “autistas de verdade” ignoram-lhes as limitações e necessidades específicas.

Não percebem a propensão do “aspie” a sofrer sobrecarga mental, emocional e sensorial; sua dificuldade de socializar; sua limitação na compreensão e uso de linguagem não verbal e regras não ditas; suas condições coexistentes etc.

Daí, por não serem reconhecidos como autistas “de verdade”, têm ainda mais dificuldade para conseguir um diagnóstico - que hoje ainda não é considerado um direito e, por isso, requer sorte e dinheiro - e o laudo correspondente que lhes garantiria o acesso aos direitos de pessoas com deficiência.

Isso quando ao menos sabem e entendem que são neurodivergentes. Afinal, a disponibilização de informações sobre o espectro autista ainda não tem um alcance satisfatório e não chegou a todos os autistas e seus familiares ou guardiões.

Muitos autistas “aspies” não diagnosticados, por pouco ou nada entenderem sobre a condição, não se (re)conhecem como neurodiversos. Continuam achando-se neurotípicos “esquisitos”, sofrendo capacitismo sem saber por quê e tendo vergonha de si mesmos e suas limitações.

6. A palavra “síndrome” patologiza o autismo

Quando foi criado, oficializado e incluído entre os nomes das condições do espectro autista nos anos 80, o termo “Síndrome de Asperger” refletia o paradigma da patologia, também conhecido como o modelo médico do autismo.

Todo o jeito de ser “aspie”, com seus potenciais, pontos positivos, excentricidades, limitações e necessidades de suporte, era tachado pela comunidade médica de “síndrome”. Algo análogo, por exemplo, a condições severamente negativas como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), a Síndrome de Tourette e a Síndrome do Impostor.

Por causa disso, a rejeição da terminologia “Síndrome de Asperger” também tem sido uma oportunidade em que muitos autistas reafirmam seu repúdio à designação do autismo como “síndrome”, “transtorno”, “perturbação” ou “condição médica” ao invés de uma deficiência, condição de existência e diferença neurológica natural.

Conclusão

Tem ficado a cada dia mais evidente por que, depois da unificação do espectro autista pelo DSM-5 e pelo CID-11 e do lançamento do livro Crianças de Asperger, a continuidade do uso das terminologias “Síndrome de Asperger” e “aspie” tem sido cada vez mais desencorajada.

Levando em conta que a antiga distinção entre os “aspies” e os demais autistas trouxe malefícios e discriminação a toda a comunidade autista - de maneiras distintas que dependem da posição do indivíduo no espectro -, eu integro a categoria de pessoas que recomendam esse desuso.

Por isso, se você, autista ou não, ainda reserva um espaço para Hans Asperger nas terminologias do autismo, considere deixar de reservar. Utilize, no lugar, “autismo/autistas de nível 1 de suporte”.

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