terça-feira, 24 de novembro de 2020

Cripface: quando atores neurotípicos interpretam autistas estereotipados

Descrição da imagem #PraCegoVer: Imagem do trailer do filme "Music" da cantora Sia. Ela exibe a personagem autista Music vestida com camiseta caminhando com um headphone e com expressão facial alegre e relaxada, atrás de duas pessoas que aparecem desfocadas e com os rostos cortados. Fim da descrição.
Imagem do trailer do filme "Music" da cantora Sia

Editado e republicado em 22/12/2022, com a correção do conceito de cripface

Entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2021, a cantora Sia revoltou a comunidade autista ao anunciar o filme Music, que conta a história de uma menina autista não oralizada.

Os motivos foram o emprego da neurotípica Maddie Ziegler, ao invés de uma autista, para fazer esse papel, a forma estereotipada com que os autistas são representados no filme e a reação odiosa e insultuosa da musicista e diretora às críticas da comunidade autista.

O caso desse filme trouxe à tona um debate muito importante dos movimentos das pessoas com deficiência: a ocorrência do cripface em filmes, séries, novelas e peças teatrais.

O que é esse tal de cripface? E por que ele causa tanto repúdio entre a população autista? Este artigo vai apresentar a você esse conceito que poucos hoje conhecem fora do ativismo anticapacitista.

O que é o cripface?

O cripface é quando atrizes e atores sem deficiência são contratados para interpretar personagens com deficiência e, na atuação, "imitam" a deficiência de maneira que parece estar zombando das pessoas com aquele tipo de condição.

No caso do autismo, ocorre quando um(a) neurotípico(a) é escolhido(a) para interpretar um(a) autista e mimetiza as características da condição de maneira exagerada e baseada em estereótipos.

O nome cripface é uma junção de crippled (sinônimo de disabled, pessoa com deficiência em inglês) e face (rosto, face). Remete ao blackface, o condenável ato de pessoas brancas, na tentativa de imitar pessoas negras, pintarem o rosto de preto e, no caso de performances artísticas, mimetizarem estereótipos racistas.

Alguns exemplos de dramatizações acusadas de cripface, além de Music, são a novela Amor à Vida (2013), o seriado Atypical (2017) e o filme Rain Man (1988).

Os problemas que muitas vezes acontecem quando personagens autistas são desenhados por roteiristas neurotípicos e interpretados por atores idem

Foto do personagem Sam Gardner, um rapaz branco autista de cabelo curto vestido com camisa de botões azul, com mochila nas costas e com um abafador de ruídos repousando no pescoço, aparecendo do peitoral para cima, sobre um plano de fundo de escola de ensino médio com armários para estudantes
Sam Gardner de Atypical, exemplo de personagem autista acusado de representar, em alguma medida, o cripface (Foto: Divulgação)

O primeiro problema do cripface ocorre a partir do momento em que uma pessoa neurotípica é chamada para fazer o papel de uma autista.

Quando isso acontece, uma atriz ou ator autista deixa de ser contratado para esse fim. Com isso, o grave problema da sub-representação de autistas e demais PCDs nas telas é perpetuado. 

Para você ter uma ideia, segundo o The Annenberg Inclusion Initiative, apenas 2,7% dos personagens dos 100 filmes de maior bilheteria de 2016, não incluindo figurantes, tinham alguma deficiência. E dentro desse pequeno percentual, apenas 5% deles eram interpretados por atores realmente com deficiência.

Ou seja, apenas 1 em cada 1000 personagens de filmes é interpretado por uma PCD. Uma sub-representação absurda!

O segundo grande problema é quando os produtores, roteiristas, diretores e atores, todos neurotípicos, fazem uma retratação errônea e cheia de estereótipos sobre como um autista vive e se comporta.

O autista geralmente é mostrado como um personagem branco cisgênero - majoritariamente do gênero masculino -, um “grande gênio”, com stims caóticos, infantilizado, cheio de comportamentos “esquisitos demais” (como chamar palavrões compulsivamente em público), exageradamente excêntrico, entre outros.

Para desempenhar o papel de autista, o ator ou atriz neurotípica faz literais mímicas que tentam simular, por exemplo, os stims, o sofrimento de sobrecarga sensorial, comportamentos autísticos diversos etc.

Por não ser autista, dificilmente ele(a) consegue fazer tudo isso de maneira realmente fiel ao comportamento real das pessoas neurodivergentes. Além disso, o uso de mímicas para imitar autistas é considerado pela comunidade autista algo muito desrespeitoso e capacitista.

Em outras palavras, segundo diz a ativista autista Ellen Jones no site do jornal The Guardian, “o que estamos vendo na mídia mainstream não é um reflexo verdadeiro do autismo. Estamos, ao invés, vendo o que os neurotípicos acham que o autismo é”.

O caso do filme Music

A personagem Music, do repudiado filme homônimo, exibe vários estereótipos autísticos:

  • É descrita como alguém que vê o mundo de maneira “completamente diferente” da dos neurotípicos;
  • Seus traços autísticos são sempre exagerados, não correspondendo aos da maioria dos autistas - incluindo os de níveis 2 e 3;
  • Comporta-se de maneira sempre muito infantilizada mesmo já sendo uma adolescente;
  • Diz apenas frases básicas através do dispositivo de comunicação alternativa (como “Eu estou triste” e “Eu estou feliz”);
  • Exibe-se como uma pessoa extremamente excêntrica o tempo todo.

O filme Music leva a concepção preconceituosa do autismo por cineastas neurotípicos a níveis ainda mais absurdos quando sabemos que:

Com isso, Music traz um exemplo muito agressivo de cripface. O menos mal é que a péssima repercussão do trailer do filme e da atitude odiosa de Sia contra seus críticos fortaleceu o debate sobre o problema e, por tabela, despertou ainda mais a força do movimento autista.

Outro acontecimento reconfortante para a comunidade autista é que o filme foi tão mal recebido que ganhou três prêmios Framboesa de Ouro, dados aos piores filmes do ano em diversas modalidades, em 2021.

Conclusão

O cripface, sendo uma forma de discriminação contra autistas e fomento de crenças capacitistas, é um problema sério que precisa ser (re)conhecido e combatido pela sociedade.

Os estúdios precisam ouvir de verdade a população autista - juntamente com as demais pessoas com deficiência. É necessário que tomem consciência do problema da sub-representação dos autistas, revejam o emprego de atores neurotípicos para "imitar" autistas e, finalmente, incluam atores neurodivergentes que interpretem personagens com as mesmas condições.

As estatísticas e costumes vergonhosos que atestam o capacitismo generalizado no cinema e na teledramaturgia precisam virar coisa do passado. Queremos mais representações autênticas do autismo por autistas nas telas e palcos!

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