quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O ódio do movimento antivacina contra autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Uma mão de homem branco faz sinal de "Pare" a uma mão de médico com uma seringa cheia de uma dose de vacina. O homem antivacina diz "Não quero me vacinar. Meu capacitismo contra autistas e minha crença fanática em fake-news não me permitem". Fim da descrição.

Editado em 14/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo contém menções a capacitismo contra autistas. Continue lendo-o apenas se tiver segurança de que não sofrerá gatilhos traumáticos.

A fraudulenta teoria de que vacinas “causam autismo” em crianças revelou ao mundo o quanto o movimento antivacina odeia os autistas.

O tempo todo falando da nossa condição como se fosse uma doença, e das mais terríveis, ele semeia pânico e prega intolerância para muitas mães e pais desinformados de crianças pequenas. 

Os induz a acreditar que é preferível deixá-las vulneráveis a doenças de verdade, que causam muito sofrimento e podem matar ou deixar sequelas irreversíveis, a vê-las se revelar neurodivergentes.

Diante da reação dos adeptos dessa abominável ideologia à vacinação contra o Covid-19, conheça melhor esse lado capacitista dela. Saiba como ela induz as pessoas a terem ódio e preconceito contra nós autistas e se apavorarem com a possibilidade de terem filhos que sejam como nós.

O artigo fraudulento de Wakefield: o “start” do ódio antiautismo no movimento antivacina

O ódio antiautismo que se vê hoje no movimento antivacina começou com a publicação, em 1998, do artigo do hoje ex-médico Andrew Wakefield. Seu conteúdo “alertava” sobre uma suposta relação entre a vacina tríplice MMR, contra sarampo, caxumba e rubéola, e a manifestação de comportamentos autísticos em crianças que a haviam recebido.

Só que várias pesquisas (leia aqui uma matéria sobre uma delas), nos anos seguintes, refutaram toda e qualquer relação de causa e efeito entre as vacinas e o autismo.

Em 2010, após uma queda considerável no número de crianças vacinadas com a tríplice no Reino Unido, a revista científica na qual o “estudo” de Wakefield havia sido publicado se retratou, por causa da metodologia fraudulenta utilizada e da presença de sérios conflitos de interesses, e o retirou daquela edição de 1998.

E logo em seguida Wakefield teve o seu registro profissional cassado, sendo proibido de exercer a medicina desde então.

A punição aplicada ao ex-médico vigarista foi exemplar, mas não conseguiu parar o estrago que o artigo dele causou. 

Desde então o movimento antivacina, com a conivência das big techs donas das grandes redes sociais, não tem parado de crescer, inventar mais mentiras sobre uma suposta nocividade das vacinas e diminuir o número de pessoas que confiam nelas.

Como a ideologia antivacina irradia seu preconceito contra os autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Tweet capacitista antigo de Donald Trump, em que ele diz (em inglês) "Criança pequena saudável vai ao médico, é enchida com uma injeção massiva de muitas vacinas, não se sente bem (sic) e muda - AUTISMO. Muitos casos assim!". Fim da descrição.
O capacitismo de Donald Trump: "Criança pequena saudável vai ao médico, é enchida com uma injeção massiva de muitas vacinas, não se sente bem (sic) e muda - AUTISMO. Muitos casos assim!

O ódio antiautismo dos opositores das vacinas continua se apoiando na fraude de Wakefield. 

Isso ficou perceptível, como revela essa matéria de 2019 do Último Segundo/IG, com o documentário Vaxxed, de 2016, em que o ex-médico reafirma suas mentiras de 1998, e em declarações de gente como Donald Trump, em 2014 - quando poucos acreditavam faltar dois anos para ele ser eleito presidente dos Estados Unidos -, e a atriz Jenny McCarthy, que diz que o filho “pegou autismo” após ser vacinado.

É muito evidente o quanto o discurso dessas pessoas é repleto de capacitismo, de uma visão do autismo como uma “terrível doença”, ao invés de uma condição neurodivergente natural que combina deficiência com virtudes e excentricidades de personalidade.

Como o hoje ex-presidente dos EUA disse no fatídico tweet de 2014, o indivíduo autista essencialmente “não se sente bem” tendo o cérebro que tem. Ou seja, é um “doente” crônico.

Sua “doença” é simplesmente ser ele mesmo. É ser alguém que, ao mesmo tempo que tem limitações de processamento sensorial, comunicação e socialização, pode ser uma pessoa muito inteligente, gentil, questionadora das injustiças, sincera, leal etc. justamente por ter um cérebro diferente.

Atribuindo uma natureza tão negativa ao autismo, os antivacinas defendem que ele deixe de existir. Essa erradicação viria tanto por “curas” que na verdade não funcionam e podem causar graves danos à saúde - como defende o livro Whitewash, de Joseph Keon - como pela recusa de cada vez mais pessoas de se vacinar e deixar seus filhos serem imunizados.

Isso é excelente para os seus gurus, que muitas vezes ganham dinheiro graças a esse discurso criminoso. É o caso dos charlatões vendedores de “tratamentos” fraudulentos para condições que não são doenças, como o próprio autismo, e para as reais doenças cujo contágio a falta de vacinação permite.

Ou seja, os que faturam com as vendas de MMS, óleos essenciais pseudomedicinais, livros de dietas sem glúten e sem lactose adotadas por crenças falsas, sessões de coaching pseudoterapêutico etc. Precisam manter seu público cativo, por isso disparam suas desinformações e manipulações todos os dias.

Ou seja, defender que é melhor uma criança sofrer e morrer com uma evitável doença contagiosa do que ser autista é lucrativo para pessoas muito mal intencionadas.

Conclusão

Por mais que os cientistas e as autoridades de saúde refutem suas mentiras, os antivacinas, por terem interesses pessoais escusos nessa ideologia, permanecem propagando-as e convencendo os incautos de que o autismo é uma doença e deve ser combatido ou prevenido.

Esse capacitismo, somado aos crimes contra a saúde pública, deve nos motivar a combater esse movimento assassino com o vigor que for possível.

Já basta de ver essas pessoas nos tratando como doentes e propagando desinformação que mata!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Por que cada vez mais autistas rejeitam os termos “Síndrome de Asperger” e “aspie”

Descrição da imagem #PraCegoVer: A expressão Síndrome de Asperger aparece em destaque riscada com um grande X vermelho. Embaixo dela, está o título Por que cada vez mais autistas estão abandonando e rejeitando o termo "Síndrome de Asperger". Fim da descrição.


Editado e atualizado em 14/12/2022

Uma tendência tem sido vista desde o final da década de 2010: cada vez mais autistas estão abandonando o termo “Síndrome de Asperger” para se referir ao autismo de nível 1 de suporte e a identidade social “aspie”.

Um após o outro, perfis e páginas de redes sociais, sites e canais de vídeos administrados por autistas têm retirado de seus nomes as referências à terminologia e substituído pelos termos “autista” e “autie”.

Se você ainda não sabe por que tanta gente está rejeitando-os, saiba aqui neste artigo. Você também terá a oportunidade de deixar você mesmo(a) de utilizá-los e preferir se referir aos autistas de nível 1 como autistas mesmo.

Os vários porquês da queda em desuso dos termos

Tenho percebido que esse abandono, que já estava acontecendo desde a publicação do DSM-5, acelerou desde 2019 ou os primeiros meses de 2020.

São várias as razões, a seguir.

1. O DSM-V e o CID-11 tornaram o diagnóstico de “Síndrome de Asperger” obsoleto

Em 2013, o DSM-V abandonou o diagnóstico de Síndrome de Asperger, ao unificar todas as condições então associadas ao autismo (exceto a Síndrome de Rett) no “Transtorno” do Espectro Autista (TEA).

Ao invés de um conjunto de condições relacionadas, o espectro autista passou a ser um diagnóstico só, diferenciado internamente apenas pelo grau de necessidade de apoio - o qual muita gente ainda confunde com os de “severidade” e “funcionamento”.

Porém, a terminologia inspirada em Hans Asperger ainda sobreviveu por mais oito anos por causa da vigência do CID-10. Até dezembro de 2021, ela ainda era usada por psiquiatras nos países em que o Código Internacional de Doenças* é usado para condições psiquiátricas.

A partir de janeiro de 2022, entrou em vigor o sucessor CID-11. Ele acompanhou o DSM-V e também unificou todas as condições autísticas no TEA. Nesse meio, substituiu a “Síndrome de Asperger” (código F84.5 no CID-10) pelo “Transtorno” do Espectro do Autismo sem deficiência intelectual (DI) e com comprometimento leve ou ausente da linguagem funcional, de código 6A02.0.

Com os profissionais de saúde mental e neurológica aderindo ao CID-11 e deixando para sempre de usar o termo em questão, não faz mais sentido continuar usando-o como um “tipo de autismo”.

*Apesar de o autismo constar no intitulado Código Internacional de Doenças, ele não é uma doença. Condições mentais não patológicas também são abrangidas pelo CID.

2. O livro Crianças de Asperger denuncia o sombrio porquê de “aspies” terem sido clinicamente diferenciados dos demais autistas

Crianças de Asperger [link afiliado] conta uma parte importante da história inicial do autismo, quando foi diagnosticado e descrito pelos austríacos Leo Kanner e Hans Asperger no contexto do regime de terror nazista.

Entre as revelações do livro, está o porquê de Asperger ter diferenciado as crianças que hoje consideramos autistas de nível 1 das de outros níveis de suporte: ele estava rotulando os pequenos autistas sob a ótica da “serventia” dos indivíduos para o regime totalitário então em vigor.

Assim, as primeiras, consideradas de “alto funcionamento”, seriam poupadas, e as últimas, tachadas como de “baixo funcionamento”, enviadas para a morte.

Existe toda uma controvérsia sobre a conduta de Asperger, se ele estava tentando salvar parte das crianças da execução ou se sua postura, de designar aquelas com maiores limitações para serem mortas pela máquina de extermínio do nazismo, era da vontade própria dele e refletia um apoio individual ao mesmo.

Mas um fato tem sobressaído: ele era um nazista e participou do assassinato de crianças. Essa constatação iniciou a crescente rejeição ético-moral do diagnóstico de “Síndrome de Asperger” e da identidade social “aspie”.

O resultado foi que o processo de abandono dessas terminologias se acelerou ainda mais desde o lançamento do livro.

Um exemplo de como a diferenciação da "Síndrome de Asperger" em contraste com o restante do espectro autista dá margem a uma visão equivocada e estereotipada sobre como é ser um "aspie", incluindo a de não ser um "autista de verdade"

3. Não existe nenhum critério relevante para diferenciar “aspies” de autistas nível 1 “não aspies”

Sempre houve fortes dúvidas sobre que sentido fazia diferenciar a “Síndrome de Asperger” do “autismo de alto funcionamento” (AAF), ou mesmo se ambos representavam ou não a mesma condição autística.

Isso se dava porque nunca existiram diferenças relevantes entre os “aspies” e os autistas “leves” “não aspies”. As mais disseminadas eram a idade em que a pessoa começou a falar e o seu nível de inteligência.

Para muitas pessoas, se a pessoa começou a falar na idade típica, em torno de 1 ano, e tem inteligência acima da média, é “aspie”; se aprendeu a falar com atraso e tem inteligência apenas moderada, não seria “aspie”, mas sim AAF.

O problema é que existem muitos autistas que ficam no meio-termo entre ser “aspie” ou de “alto funcionamento”. 

No meu caso específico mesmo, eu aprendi a falar aos 3 anos e 2 meses de idade. Mas com essa única exceção, tenho todas as características da “síndrome”, além de ter sido diagnosticado superdotado aos 4 anos. Ou seja, fiquei no limite entre o “aspie” e o AAF.

Além disso, ambas as diferenças são muito subjetivas. Em relação ao atraso do começo da fala, nunca se especificou de quantos anos ele teria que ser - se a criança, se falou só a partir dos 3 anos, como no meu exemplo, era invariavelmente considerada AAF ou poderia ser sim diagnosticada “aspie”.

E quanto à inteligência, nunca se mencionou quais parâmetros a definem. Um autista com conhecimentos extremamente avançados em futebol ou ficção nerd e dificuldade de entender Matemática e Lógica, mas sem deficiência intelectual, seria considerada inteligente a ponto de ser rotulado como “aspie”? Ou teria um “QI médio ou baixo” e seria lido como AAF?

Tanto não há uma diferenciação objetiva relevante entre ambas as condições que elas foram unificadas pelo DSM-5 e pelo CID-11. “Aspies” e AAFs são hoje simplesmente autistas de nível 1 de suporte - também conhecidos, na antiga categorização popular por “severidade”, como “autistas leves”.

4. A diferenciação entre “aspies” e autistas “não aspies” favorece a discriminação capacitista

Um sério problema de âmbito ético em se distinguir “aspies” de autistas “não aspies” é que isso criou uma hierarquização moral entre os autistas, aos olhos tanto de muitos neurotípicos quanto aos de alguns “aspies” que reproduzem capacitismo.

Nessa hierarquia, os “aspies” são vistos como a “elite” dos autistas. São tratados como se fossem os mais “capazes”, inteligentes e habilidosos do espectro e tivessem até alguns “poderes” superiores aos dos neurotípicos.

E dentro dessa “elite”, os “aspies” superdotados - ou seja, com dupla excepcionalidade - são postos no topo e aclamados como correspondentes ao estereótipo do gênio tímido excêntrico e pouco sociável.

Enquanto isso, os AAF e os autistas de níveis 2 e 3 de suporte, com inteligência considerada “média” ou deficiência intelectual, ficam numa posição mais “baixa”

São tidos como intelectualmente “inferiores” e, portanto, “menos capazes” ou mesmo “incapazes”. Têm seus verdadeiros potenciais, habilidades, capacidades e demandas ignorados e desvalorizados.

Isso dá margem a um triste costume de discriminação, inclusive dentro da própria comunidade autista. 

Os neurotípicos tendem a ter muita admiração - muito hipócrita, por sinal - pelas habilidades que muitos “aspies” demonstram, em especial os duplo-excepcionais, enquanto o que dedicam aos “não aspies” é pena, subestimação das capacidades e desejo de “curar” ou “consertar”.

Já os “aspies” com capacitismo internalizado, em especial os politicamente de direita, acabam achando a si mesmos “superiores” aos demais autistas, mais merecedores do sucesso e da felicidade, e tratando de maneira preconceituosa os demais integrantes do espectro.

5. Essa distinção prejudica os próprios “aspies”

Essa hierarquização entre “aspies”, AAFs e autistas de níveis 2 e 3 não prejudica somente os inferiorizados, mas também aos próprios “aspies”.

Por serem os mais notados como “habilidosos” e de “grande potencial”, são vistos como “menos autistas” do que o restante do espectro. Por causa disso, sofrem mais cobrança e pressão da sociedade para se comportarem igual aos neurotípicos.

Sempre que não conseguem cumprir essas expectativas, são vistos como “esquisitos”, “mal educados”, “grosseiros”, “mal comportados” e tratados de maneira hostil e capacitista.

Além disso, os mesmos que os tacham de “gênios esquisitos” e não os veem como “autistas de verdade” ignoram-lhes as limitações e necessidades específicas.

Não percebem a propensão do “aspie” a sofrer sobrecarga mental, emocional e sensorial; sua dificuldade de socializar; sua limitação na compreensão e uso de linguagem não verbal e regras não ditas; suas condições coexistentes etc.

Daí, por não serem reconhecidos como autistas “de verdade”, têm ainda mais dificuldade para conseguir um diagnóstico - que hoje ainda não é considerado um direito e, por isso, requer sorte e dinheiro - e o laudo correspondente que lhes garantiria o acesso aos direitos de pessoas com deficiência.

Isso quando ao menos sabem e entendem que são neurodivergentes. Afinal, a disponibilização de informações sobre o espectro autista ainda não tem um alcance satisfatório e não chegou a todos os autistas e seus familiares ou guardiões.

Muitos autistas “aspies” não diagnosticados, por pouco ou nada entenderem sobre a condição, não se (re)conhecem como neurodiversos. Continuam achando-se neurotípicos “esquisitos”, sofrendo capacitismo sem saber por quê e tendo vergonha de si mesmos e suas limitações.

6. A palavra “síndrome” patologiza o autismo

Quando foi criado, oficializado e incluído entre os nomes das condições do espectro autista nos anos 80, o termo “Síndrome de Asperger” refletia o paradigma da patologia, também conhecido como o modelo médico do autismo.

Todo o jeito de ser “aspie”, com seus potenciais, pontos positivos, excentricidades, limitações e necessidades de suporte, era tachado pela comunidade médica de “síndrome”. Algo análogo, por exemplo, a condições severamente negativas como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), a Síndrome de Tourette e a Síndrome do Impostor.

Por causa disso, a rejeição da terminologia “Síndrome de Asperger” também tem sido uma oportunidade em que muitos autistas reafirmam seu repúdio à designação do autismo como “síndrome”, “transtorno”, “perturbação” ou “condição médica” ao invés de uma deficiência, condição de existência e diferença neurológica natural.

Conclusão

Tem ficado a cada dia mais evidente por que, depois da unificação do espectro autista pelo DSM-5 e pelo CID-11 e do lançamento do livro Crianças de Asperger, a continuidade do uso das terminologias “Síndrome de Asperger” e “aspie” tem sido cada vez mais desencorajada.

Levando em conta que a antiga distinção entre os “aspies” e os demais autistas trouxe malefícios e discriminação a toda a comunidade autista - de maneiras distintas que dependem da posição do indivíduo no espectro -, eu integro a categoria de pessoas que recomendam esse desuso.

Por isso, se você, autista ou não, ainda reserva um espaço para Hans Asperger nas terminologias do autismo, considere deixar de reservar. Utilize, no lugar, “autismo/autistas de nível 1 de suporte”.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Discriminação contra autistas em livros de autoajuda: como obras que deveriam nos ajudar a viver melhor nos trazem mais sofrimento e frustração

Descrição da imagem #PraCegoVer: A imagem mostra a capa do livro Comunicação Global, de Lair Ribeiro, um exemplo de autoajuda que discrimina autistas, e a legenda "Como livros de autoajuda exaltam habilidades neurotípicas, discriminam os autistas e lhes trazem sofrimento e frustração". Fim da descrição.

Editado em 15/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo menciona capacitismo, discriminação e problemas de autoestima. Continue lendo-o apenas se tiver certeza de que não sofrerá gatilhos psicológicos.
Obs.: Este artigo não debate a eficácia (ou falta dela) dos livros de autoajuda em ajudar os leitores a terem uma vida melhor. Ele pressupõe que algumas obras desse gênero, quando não excluem autistas, podem sim orientá-los, ainda que de maneira limitada.

A discriminação contra autistas muitas vezes vem de onde muitos de nós menos esperavam: os livros de autoajuda e desenvolvimento pessoal e profissional.

Neles buscamos saber como viver vidas mais produtivas e felizes, ter mais resultados positivos no nosso trabalho, fazer mais amizades etc. Mas o que encontramos em muitas dessas obras nos causa, na verdade, frustração e sofrimento imensos.

Saiba neste artigo como a exclusão capacitista de autistas tem sido comum nesse tipo de livro e o que precisa ser feito para pelo menos diminuir isso.

Como a autoajuda tem tratado os autistas como se não existissem ou fossem inferiores

A imensa maioria dos livros de autoajuda é direcionada unicamente para neurotípicos, mas nunca especifica esse foco. Ou seja, foram pensados e escritos de maneira tal que é como se autistas não existissem ou não fossem dignos de consideração.

Têm entre seus focos o domínio de habilidades sociais e do uso e compreensão da linguagem não verbal. Bom seria se apenas ensinassem o leitor a adquiri-las ou melhorá-las caso as tenha pouco - o que seria muito bem-vindo para o público autista. 

Só que não se restringem a esse objetivo. Assumindo o atributo de "manuais do sucesso", fazem questão de ressaltar que só quem as domina com plenitude tem chances significativas de ser aceito e prestigiado na sociedade.

Enfatizam que saber habilidades extremamente difíceis - quando não impossíveis - para autistas, como o contato visual, o rapport, a sincronização entre a gesticulação manual e a fala, a transmissão de mensagens implícitas por meio dos movimentos dos olhos, a fala com muita clareza e fluidez e a postura corporal em cada situação, é decisivo para o o cultivo de amizades e relacionamentos amorosos, o sucesso e a felicidade. 

Subentendem, ou mesmo deixam explícito, que quem não é hábil com tudo isso tende a permanecer com uma vida de baixa qualidade e nunca ser bem-sucedido na vida pessoal e profissional.

Ao tomar isso como uma verdade "óbvia" e incentivar que o leitor respeite e admire mais quem domina essas habilidades e menos quem tem dificuldade de assimilá-las, a autoajuda incentiva ativamente a discriminação contra autistas.

Exalta o comportamento neurotípico como o único que deve ser aceito e apreciado. Hierarquiza as pessoas nas relações humanas, colocando:

  1. No topo, os neurotípicos dominadores de habilidades sociais e comunicacionais, como os mais dignos de aceitação, respeito, prestígio e sucesso;
  2. Na camada intermediária, os não autistas não tão hábeis mas que podem aprendê-las sem grandes dificuldades;
  3. Na mais inferior, os autistas, que na maioria dos casos não conseguem aprendê-las e dominá-las por mais que se esforcem, fadados a uma vida de fracassos e à margem das relações humanas.

Os autores geralmente não intencionam inferiorizar os autistas e incentivar o capacitismo. Só que eles, na maioria das vezes, não sabem da existência dos de nível 1 de suporte. 

Provavelmente só reconhecem como autistas “de verdade” aqueles de níveis mais avançados de necessidade de suporte, com limitações muito significativas de comunicação.

Por isso, acreditam que todos aqueles que leem seus livros têm o mesmo potencial de aprender essas habilidades. Que só existem neurotípicos nas ocasiões sociais. 

Não admitem que existem aqueles cuja condição de neurodesenvolvimento as limita e dificulta esse aprendizado.

A frustração do autista que não encontra apoio nesses livros

Descrição da imagem #PraCegoVer: Uma mulher branca de cabelos castanhos e louros de tamanho médio e um homem também branco de cabelo preto curto, ambos usando camisas com listras, horizontais, olham nos olhos um do outro. Fim da descrição.
Contato visual, uma das habilidades mais difíceis para a maioria dos autistas e uma das mais exaltadas por livros de autoajuda

Por causa da abordagem capacitista e invisibilizadora dos livros de autoajuda, o leitor autista quase certamente encontrará nada além de frustração e vergonha de si mesmo.

O impacto psicológico de saber que a felicidade, o sucesso e a prosperidade, segundo essas obras, estão condicionados a habilidades que ele nunca conseguirá dominar e, portanto, são inalcançáveis é terrível.

Ele tentará imitar essas habilidades, mas essa cópia não será bem-sucedida. No máximo servirá como “máscara” social na tentativa de temporariamente parecer neurotípico aos olhos da sociedade.

Desanimado por não conseguir o mesmo êxito dos neurotípicos, se sentirá um fracassado. Sua autoestima, que provavelmente já era baixa, cai ainda mais.

E mais uma vez o autista sofre as consequências da discriminação e é induzido a acreditar que o problema está nele mesmo, não no capacitismo da sociedade.

O que fazer para diminuir esse problema

O que os autores de autoajuda podem fazer para que seus livros deixem de considerar a existência apenas de neurotípicos é, em primeiro lugar, se conscientizar sobre nós autistas.

Devem conhecer nossas limitações, capacidades, necessidades específicas. Entender que tendemos a não nos encaixar no perfil que eles acreditam ser o único “normal” de habilidades sociais e comunicacionais.

A partir disso, pedirão para as editoras inserirem, nas próximas reimpressões de seus livros, um aviso de conteúdo de que autistas poderão ter dificuldades de aplicar os ensinamentos ali presentes. 

Isso seria uma medida provisória até que futuras edições dessas obras e títulos inéditos fossem lançados incluindo e respeitando devidamente a diversidade neurológica e comunicacional.

Nessas futuras obras mais inclusivas, a abordagem deverá deixar de lado a discriminatória ideia de que as habilidades de comunicação e socialização neurotípicas são “essenciais” para as pessoas serem felizes e aceitas.

Precisará incentivar que os não autistas considerem as especificidades dos neurodivergentes, abandonem as velhas exigências e expectativas de comportamento centradas nos padrões neurotípicos e nos aceitem do jeito que somos sem demandar que nos ajustemos a estes.

Daí então veremos o gênero de autoajuda deixar de ser o foco de capacitismo antiautista que é hoje.

Conclusão

Os autores de autoajuda precisam urgentemente se conscientizar sobre nós autistas e nosso jeito de ser. 

Está na hora de perceberem que seus livros muitas vezes nos fazem mais mal do que bem ao exaltarem o domínio de habilidades exclusivas dos neurotípicos e o considerarem obrigatório para uma vida feliz e bem-sucedida.

Estamos fartos de ser vistos como exemplos de pessoas malsucedidas, fracassadas, condenadas a sofrer pelo resto da vida por não serem como os não autistas. Porque é isso que essas obras deixam a entender para os seus leitores.

Queremos uma literatura de desenvolvimento pessoal e profissional inclusiva, que reconheça e respeite a nossa existência, considere nossas limitações e ajude tanto a nós quanto aos neurotípicos. 

Que não exija mais que todos tenham as mesmas habilidades de comunicação e socialização para merecerem o mesmo sucesso na vida. Que contemple a neurodiversidade.

Um último alerta

A autoajuda nunca deve substituir a psicoterapia com psicólogos capacitados, formados em Psicologia e especializados nas necessidades específicas do paciente. Portanto, se você costuma recorrer a livros, vídeos e cursos de autoajuda e coaching na tentativa de não precisar da Psicologia, reveja o quanto antes essa postura e busque ajuda de um(a) psicólogo(a).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A discriminação contra autistas na esquerda, como isso pode levar muitos de nós a buscarem a direita e como prevenir isso

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um semicírculo com vários prendedores de papel coloridos com carinhas felizes aparece no rodapé da imagem, quanto mais acima aparece um prendedor amarelo isolado sem expressão facial. Fim da descrição.

Editado em 21/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo contém menções a capacitismo, discriminação e abusos verbais contra autistas. Leia-o apenas se tiver segurança de que não sofrerá gatilhos psicológicos.
Obs.: Este artigo não é antiesquerdista, nem é uma generalização de todas as pessoas neurotípicas de esquerda.

Algo infelizmente sistemático nas esquerdas hoje, desde coletivos social-liberais e socialdemocratas até marxistas e anarquistas, são a exclusão e invisibilização de nós autistas e das nossas pautas.

São muito comuns nesses meios o capacitismo contra nós, o baixo conhecimento sobre as pautas da neurodiversidade e a exigência sutil de fortes habilidades sociais para as pessoas se integrarem e permanecerem nos movimentos sociais e coletivos políticos.

Esse quadro de exclusão expõe muita gente da comunidade autista a um sério risco: o de serem cooptados pela direita. Isso inclui tanto o voto em candidatos conservadores que promovem assistencialismo a pessoas com deficiência quanto a adesão ideológica ao neoliberalismo.

Se você está entre as pessoas de esquerda que ainda não têm consciência desse problema, convido você a conhecê-lo mais a fundo neste artigo. Depois de se conscientizar sobre ele, considere levar o debate para dentro dos movimentos dos quais você participa.

A exclusão da categoria autista entre as minorias defendidas pelos neurotípicos de esquerda

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um círculo de figuras humanas de cartolina dando as mãos e formando um grupo, enquanto no lado esquerdo uma figura humana parecida de cor diferente aparece isolada, como se tivesse sido discriminada pelo círculo, e cabisbaixa. Fim da descrição.

O primeiro aspecto mais destacável do problema que aqui denuncio é a não inclusão do movimento autista e de suas pautas por parte da grande maioria dos neurotípicos de esquerda, pelo menos no Brasil.

Nessa metade do espectro político, fala-se muito da classe trabalhadora, da população em situação de pobreza ou miséria, das mulheres, das pessoas racializadas, das LGBTQIAP+, das minorias religiosas, dos refugiados e imigrantes de países pobres etc.

Inclusive está-se começando a incluir as pautas das pessoas com deficiência em geral - pelo menos as com deficiências físico-motora, auditiva, visual e/ou intelectual - e dos animais não humanos.

Mas ainda não se começou a falar com a devida frequência, nem mesmo como pertencentes à categoria das PCDs, dos autistas.

As nossas pautas, entre elas:

  • O combate ao capacitismo;
  • A derrubada do modelo médico do autismo em prol do modelo social;
  • O enfrentamento à exclusão de autistas do mercado de trabalho;
  • O controle dos estímulos sensoriais nos espaços públicos;
  • A renda mínima para autistas;
  • A compreensão e respeito às nossas limitações de socialização e comunicação,

quase nunca são debatidas pelos coletivos políticos progressistas - exceto o próprio movimento autista.

O capacitismo e a exclusividade neurotípica nas reuniões, atividades, lazeres e confraternizações dos movimentos sociopolíticos

Pelo contrário, é muito comum ignorarem a nossa existência. Costuma-se nos relegar de maneira generalizada àquele clássico estereótipo, o do menino branco de classe média que só vive isolado em casa, na escola especial e nas terapias e não se comunica nem participa da vida pública.

Porque o que se vê - ou, pelo menos, o que eu presenciei em todas as vezes em que tentei participar de coletivos políticos de esquerda ou veg(etari)anos - é uma ordem social voltada exclusivamente para neurotípicos predominantemente extrovertidos.

As pessoas que entram nesses grupos são constantemente pressionadas, mesmo que de maneira sutil, a:

  • socializar-se;
  • perceber de imediato (ou conhecer previamente) e entender plenamente todas as regras sociais implícitas;
  • expressar-se da maneira mais clara e recheada de nuances não verbais possível;
  • estabelecer e manter habilmente contato visual com seus interlocutores;
  • e entender fluentemente que mensagens a postura corporal, a expressão facial, os movimentos dos olhos, a entonação da voz, a gesticulação manual etc. dos outros estão transmitindo.

Ficamos sob a angustiante sensação de estar sob coação implícita do ambiente e das pessoas ao nosso redor para que nos comportemos como se fôssemos neurotípicos. Isso nos força a mascarar o nosso comportamento, no que cedo ou tarde acabamos quase que inevitavelmente falhando.

Ai daquela pessoa que violar alguma norma social, por não tê-la percebido ou entendido. Ai dela se, por exemplo, falar alguma verdade (mesno que não seja antiética) sem filtro, comer de maneira que achem exagerada em confraternizações, entender de maneira literal alguma fala repleta de significados ocultos.

Ela será duramente criticada, repreendida e maltratada, tendo suas dificuldades de compreensão normativa e comunicacional tratadas como desvio de caráter, estupidez, lerdeza.

Ai também do autista que tem dificuldade de se expressar verbalmente, por motivos como o cansaço mental, a sobrecarga sensorial, a insegurança psicológica, o medo de reações negativas e rejeição e a oscilação da capacidade de encadear e desenvolver suas ideias com clareza.

Não será levado a sério, não terá suas colocações e sugestões devidamente consideradas e debatidas. Será tratado como cidadão de segunda classe.

E mesmo que consiga evitar violar o quase indecifrável código social presente nas reuniões e eventos sociais do coletivo e discursar relativamente bem, ele - salvo se for um dos palestrantes - tende a ser escanteado e ignorado.

Afinal, suas dificuldades de comunicação e entrosamento em meio a um espaço de socialização intensiva o fazem ser visto, pelos neurotípicos, como alguém pouco relevante, muito imaturo, com pouco ou nada a contribuir e desinteressado em colaborar com os deveres silenciosamente exigidos.

Tenderá a não conseguir fazer amizades, nem participar com a eficiência esperada em determinados trabalhos, nem estabelecer laços de companheirismo e fidelidade ali dentro. Com isso, não será integrado, incluído, chamado - a não ser de maneira formal e fria - para as atuações do movimento.

Digo isso porque, em várias vezes, principalmente no meio vegano, eu passei por situações extremamente chatas nas quais comportamentos (que eu não sabia serem) autísticos meus foram criticados e condenados de maneira humilhante.

E soube de pelo menos duas pessoas autistas que sofreram abusos verbais parecidos de indivíduos neurotípicos ditos de esquerda - uma delas me relatou o ocorrido e a outra eu presenciei sendo atacada em público no Twitter.

Isso sem falar que esses ambientes politizados são repletos de estímulos sensoriais que para nós autistas são muito nocivos.

Muita gente falando ao mesmo tempo, megafones e carros de som emanando sons muito altos, música muito estridente, cheiros fortes de comida - principalmente carnes - e cigarro por todos os lados, luzes que às vezes estão além do que nossos olhos aguentam...

Tem-se ali um ambiente propício para nos sentirmos sobrecarregados, estressados e à beira de um meltdown ou shutdown. Se passamos mal por causa disso, ninguém no local sabe como nos socorrer e nos acolher.

Sem habilidades para lidar com autistas passando mal, os neurotípicos presentes podem levar o autista em estado de sofrimento a outro ambiente não menos sensorialmente carregado e estressante, o que só vai piorar a situação.

Em resumo, são ambientes capacitistas, demasiadamente hostis e excludentes à presença de autistas. Que autista ainda tem disposição de integrar, por exemplo, um partido, coletivo universitário ou movimento social organizado (exceto o próprio movimento autista) depois disso?

Como muitos autistas, depois de discriminados pela esquerda, podem ser cooptados pela direita

Uma esquerda que não considera a existência dos autistas e impõe dolorosos obstáculos sensoriais e atitudinais à nossa participação em seus coletivos tende a não conquistar nem manter a convicção de muitos de nós.

Aqueles de nós, principalmente adolescentes e jovens adultos, que a idealizavam como acolhedora, inclusiva e defensora para com todas as minorias acabam se decepcionando duramente.

Com isso, boa parte da nossa população termina carregada de ressentimento e de uma visão negativa sobre como pessoas de esquerda se comportam.

Desiste dessa parcela do espectro político e busca outras que à primeira vista soem mais compatíveis com sua própria condição de vida, que os acolha.

É aí que encontram no neoliberalismo e no “libertarismo” de direita, com seu apelo à autonomia do indivíduo, uma tendência político-ideológica supostamente mais confortável, acolhedora e reconhecedora de suas necessidades e sofrimentos.

Discriminados por correntes políticas voltadas para o progresso da coletividade, são convencidos por essas ideologias de que a “saída” seria defender a si mesmos, como indivíduos, de uma sociedade “naturalmente” cruel, violenta e egoísta.

São influenciados por ideólogos que dizem que a esquerda é a verdadeira opressora e a direita é quem traz liberdade e oportunidade. Acham que isso é verdade porque, de fato, foram excluídos e discriminados por movimentos progressistas.

Adicionalmente, veem produtos necessários para o seu bem-estar, como stim toys, abafadores de som e games que tornam a vida solitária mais divertida, sendo disponibilizados pelo mercado. 

Descobrem o empreendedorismo e os trabalhos de freelance em home-office como saídas para o desemprego neurodivergente que os progressistas não estão lutando como deveriam para combater.

Daí acreditam que o capitalismo está do lado deles, que podem, com esforço próprio, ser beneficiados pela meritocracia e conseguir uma vida confortável sem precisar da luta política.

E tomam conhecimento de políticos liberais ou conservadores, como Mara Gabrilli e Romário, defendendo pautas que grande parte da esquerda tem deixado de lado em prol das pessoas com deficiência.

Com isso, passam a acreditar que a saída para uma vida melhor e mais aceitadora da sua existência é pela direita

Ou seja, pela liberdade individual, pela valorização do mercado e da iniciativa privada, pelo empreendedorismo, pelo trabalho duro que lhes daria condições de ter uma vida mais digna e pelos políticos opositores do progressismo.

As atitudes e medidas que as esquerdas precisam tomar urgentemente para reverter a exclusão e endireitamento dos autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um desenho em computação gráfica de várias pessoas coloridas em cima de um cilindro branco largo que parece uma tampa de frasco. No canto direito do desenho, uma das pessoas acima do cilindro segura a mão de uma que está fora dele, para incluí-la no grupo em cima do objeto. Fim da descrição.

Diante desse perigo de muitos autistas ressentidos pelo capacitismo de esquerda aderirem à direita, ressalto que é muito urgente que as esquerdas repensem e mudem a forma como estão nos tratando.

É preciso que os neurotípicos progressistas:

  • Em primeiro lugar, abram espaço para autistas ativistas falarem, ora online, ora nos espaços físicos utilizados pelo movimento/coletivo, sobre nossa luta, nossas reivindicações e o capacitismo dentro das esquerdas;
  • Se conscientizem sobre as nossas características, necessidades, sofrimentos, demandas e lutas políticas como minoria - e percebam que essa é a verdadeira “conscientização do autismo” que queremos para dias como o 2 de abril;
  • Reconheçam seus privilégios como pessoas tratadas pela sociedade como o “normal”, o padrão aceito de desenvolvimento e funcionamento cerebral, assim como o capacitismo que praticam no dia-a-dia e precisam desconstruir;
  • Aprendam a identificar pessoas com comportamentos autísticos e perceber, por meio da observação e de perguntas que não violem a privacidade, se elas são ou não autistas;
  • Conversem, com a devida disposição de ouvir, com aqueles dentre nós que estão dispostos a disseminar a bandeira da neurodiversidade e do anticapacitismo, de modo a conhecer melhor o que reivindicamos e declarar a solidariedade e a aliança das quais precisamos;
  • Após terem passado por essa conscientização, eduquem outros neurotípicos de seu movimento/coletivo sobre o capacitismo e como combatê-lo;
  • Adaptem seus espaços físicos e eventos para que futuros membros autistas se sintam realmente acolhidos, aceitos e incluídos;
  • Adotem medidas como disponibilizar a lista das regras sociais e organizacionais do grupo e o que os membros autistas podem fazer para não as violarem, repreender atitudes capacitistas por parte de membros neurotípicos e checar se cada membro novo ou pessoa interessada em aderir ao movimento é autista ou não;
  • Façam a devida intersecção entre os movimentos sociais já consolidados e o autista - ex.: incluindo as pautas das mulheres autistas no feminismo e as das pessoas LGBTQIA+ autistas no movimento LGBTQIA+, considerando a situação de opressão dos trabalhadores e desempregados autistas.

Com essas atitudes, muitos autistas deixarão de ver os ambientes de esquerda como opressores e hostis contra eles. E cada vez menos de nós buscarão na direita individualista o que até hoje não encontraram nos movimentos sociopolíticos.

Conclusão

Os neurotípicos de esquerda precisam perceber, à medida que fortalecemos o movimento autista, o quanto estão sendo, em sua grande maioria, capacitistas contra nós e, nesse contexto, tendo atitudes que se contradizem com seus próprios princípios éticos e políticos antiopressão.

Assim como já se combate os esquerdomachos, os LGBTfóbicos e a mentalidade colonizada, é mais que necessário se começar a enfrentar também as posturas de discriminação e preconceito contra autistas nos ambientes de reunião, organização e interação social progressistas.

Isso é essencial para que muitos de nós sejam salvos de ter uma imagem péssima e traumática das esquerdas e adotarem posturas conservadoras e individualistas que, no final das contas, prejudicam as condições de vida da maioria da população neurodivergente e podem se voltar contra eles mesmos.

Fica então a demanda para que a esquerda libertadora se torne ainda mais coerente e se desfaça de uma das suas contradições de atitude pública emancipatória versus comportamento individual opressor menos percebidas da atualidade.