segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Por que chamar o autismo de nível 1 de suporte de "autismo leve" dá uma impressão equivocada sobre a condição

Descrição da imagem #pratodosverem: Imagem realística de uma balança de dois pesos. O prato esquerdo está para cima e, embaixo dela, aparece escrito "A 'leveza' atribuída ao autismo de nível 1". O prato direito está para baixo e, embaixo dela, está escrito "O peso e severidade que autistas de nível 1 sofrem por causa do capacitismo". Fim da descrição.



Editado em 02/04/2023

Muitas pessoas chamam o autismo de nível 1 de suporte, a junção das condições antes conhecidas como "Síndrome de Asperger" e "autismo de alto funcionamento", de "autismo leve".

Essa denominação popular tem um sério problema: leva a sociedade a ter uma noção equivocada e subestimativa das limitações, dificuldades e necessidades de apoio inclusivo dos autistas desse tipo - entre os quais eu me incluo.

Convido você a saber, neste artigo, por que nos rotular de autistas "leves" é um erro carregado de preconceito, e por que gostaríamos que as pessoas abandonassem esse costume.

Por que muitos ainda chamam o autismo de nível 1 de suporte de "autismo leve"


Antes de argumentar por que chamar o autismo de nível 1 de suporte de "leve" é uma má ideia, preciso responder: por que tanta gente ainda tem esse costume, por mais que ele seja danoso?

A razão principal é a tradicional e persistente categorização do autismo por "severidade" e "funcionamento", por mais que nem o DSM-5 nem o atual CID-11 a reconheçam formalmente. 

Segundo ela, os autistas seriam classificados como "leves", "moderados" e "severos". Nessa lógica, os "leves" teriam uma condição autística muito mais "branda" do que os dos outros dois tipos, conhecidos como "autistas clássicos".

Teriam menos limitações em aspectos como a comunicação oral, habilidades intelectuais, a (in)dependência de outrem para tarefas básicas cotidianas (como amarrar os cadarços dos sapatos, trocar de roupa e cuidar do próprio asseio corporal) e o nível de hipersensibilidade (no caso de quem é hipersensível) a estímulos estressantes.

Nesse contexto, estão mais próximos dos padrões e habilidades neurotípicos do que os autistas "clássicos".

Por isso o nosso autismo é rotulado como "leve" e de "alto funcionamento". Afinal, parecemos "funcionar melhor" e mais independentemente entre uma sociedade predominantemente neurotípica.

As impressões enganosas de quando se fala de "autismo leve"


Apesar dessa aparência, falar de autismo "leve" induz a uma falsa impressão sobre o que nós autistas de nível 1 de suporte vivemos, sofremos e necessitamos.

Em primeiro lugar, quando se usa a errônea régua linear de níveis de "severidade" de autismo, muitos são levados a acreditar que os "leves" são "menos autistas" do que os "moderados" e "severos", por estarem "mais próximos" do padrão comportamental e "funcional" neurotípico.

Essa crença faz com que a sociedade subestime, ou até mesmo negue, a nossa necessidade de suporte inclusivo. Por mais que seja menos intensiva do que a dos autistas de níveis 2 e 3 de suporte, ela é muito relevante e imprescindível para nós e precisa ser integralmente reconhecida e atendida.


Ela reflete a imagem que muitos neurotípicos têm de nós - como "gênios privilegiados" que só precisam fazer um "esforcinho" para se socializar com eles e lidar com as demandas da escola, da universidade, do trabalho, do coletivo político etc.

Os sofrimentos que o rótulo de "autista leve" invisibiliza


Aviso de conteúdo: Este trecho do artigo contém menções a capacitismo, abusos e suicídio. Continue lendo apenas se você tiver segurança de que não sofrerá com gatilhos traumáticos.

Esse estereótipo "positivo" do autista rotulado como "leve" invisibiliza as nossas dificuldades e o nosso sofrimento perante o capacitismo da sociedade. Esses são alguns dos percalços que sofremos:
  • Nossas possibilidades de arranjar um emprego duradouro são muito mais reduzidas do que as dos neurotípicos. Afinal, muitos de nós têm uma dificuldade extrema de se encaixar em trabalhos fora dos nossos hiperfocos e pessoas como eu têm interesses profissionais restritos a vocações que o mercado não valoriza ou estão em crise - como professor de Filosofia e/ou Sociologia, poeta e pesquisador de Astronomia;
  • Tendemos a sofrer bullying e discriminação em função de dificuldades como não entender fluentemente linguagem não verbal, interpretar brincadeiras e ironias ao pé da letra, ter pouca ou nenhuma habilidade social, ter expressões faciais menos expressivas e manifestar comportamentos considerados "infantis" e "imaturos";
  • Nossas dificuldades de comunicação não verbal e socialização limitam muito a nossa capacidade de nos relacionar com os neurotípicos, perceber sinais sutis de manipulação e nos defender de pessoas mal intencionadas;
  • Na nossa tentativa de nos relacionar com os neurotípicos, somos forçados a tentar adotar uma precaução extrema em não incidir em comportamentos que eles considerem indesejáveis, algo comparável a desviar de espinhos e buracos num caminho totalmente escuro;
  • Somos costumeiramente forçados a tentar nos adaptar à sociedade neurotípica, emulando os comportamentos dos não autistas de maneira muitas vezes desengonçada, e na maioria das vezes fracassamos e somos condenados à exclusão das rodas de amigos e colegas;
  • A hipersensibilidade que muitos de nós têm a estímulos sensoriais dificulta muito a nossa vida em meio a um ambiente urbano repleto deles. É comum o autista ter dificuldade, por exemplo, de curtir shows musicais, desfrutar da comida em um restaurante onde o cheiro de carne assando é muito forte, esperar e pegar ônibus e metrô, prestar atenção numa reunião onde várias pessoas estão falando ao mesmo tempo, permanecer em muitos lugares onde os neurotípicos ficam à vontade etc. Não raro, o autista sofre sérias crises nervosas, os meltdowns, por causa da sobrecarga sensorial e mental; 
  • A exclusão social à qual acabamos submetidos, a hostilidade que sofremos no dia-a-dia, as repreensões, os maus olhados alheios etc. não raro nos levam à depressão, ao transtorno de ansiedade, à síndrome do pânico, entre outros transtornos mentais, e ao isolamento social compulsório;
  • Nossa dificuldade de fazer e manter amizades pode nos condenar a uma vida de solidão, períodos prolongados de ausência de amigos próximos, decepções amorosas uma atrás da outra e pouco ou nenhum networking profissional;
  • Somos muito mais suscetíveis a sofrer abusos em casa, na escola, no trabalho, na igreja, em clínicas e hospitais etc. e não conseguir se defender adequadamente;
  • Nossa categoria também corre um risco muito maior de tentar suicídio do que os neurotípicos;
  • Temos muita dificuldade de conseguir diagnóstico formal e laudo, uma vez que o SUS e a rede privada de saúde hoje têm muito poucos psiquiatras e neuropsicólogos especializados em autismo de nível 1 de suporte. O indivíduo precisa ter dinheiro e/ou sorte para encontrar profissionais de saúde mental capazes de avaliar, confirmar e diagnosticar a condição. Isso nos impede de usufruir plenamente dos direitos de pessoas com deficiência. Esse problema é ainda maior para meninas, mulheres adultas e pessoas não brancas;
  • Autistas de nível 1 sem diagnóstico têm chance muito maior de não ter consciência da própria neurodivergência - tal como foi o meu caso até os 30 anos. Por causa desse autodesconhecimento, não sabem por que possuem comportamentos tão fora do padrão, têm tanta dificuldade de se socializar e entender linguagem não verbal, sofrem tanta discriminação e violência capacitista etc. Isso os leva a ter uma autoestima muito baixa e ódio de si mesmos e tende a lhes causar sérios transtornos mentais;
  • Muitas escolas se recusam a matricular alunos autistas, mesmo os de nível 1. E mesmo a maioria das que não fazem isso são completamente despreparadas para acolhê-los, incluí-los devidamente e lhes atender a necessidade de suporte. Não é à toa que essas instituições são verdadeiros infernos de intolerância, exclusão e capacitismo estrutural para a maioria dos autistas ditos "leves".
Além disso tudo, muitos de nós têm limitações e condições coexistentes que desmentem o estereótipo do "autismo brando" e "de alto funcionamento", mesmo não correspondendo aos critérios técnicos do autismo de nível 2.

Tem autistas de nível 1 de suporte com dificuldades quase intransponíveis de assumir uma vida independente porque não conseguem sozinhos cuidar do seu asseio corporal, vestir e tirar a roupa e calçar e tirar sapatos, arcar com as tarefas domésticas de sua casa, se emancipar do suporte dos pais ou guardiões etc.

Entre as condições coexistentes que tornam grande parte dos autistas dessa categoria "menos funcionais" aos olhos dos neurotípicos, estão Síndrome de Tourette, depressão (muitas vezes desde a infância), Transtorno de Ansiedade Generalizada, Transtorno de Processamento Sensorial com insensibilidade a necessidades fisiológicas, dermatilomania, esquizofrenia, Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação, Síndrome de Ehlers-Danlos, TDAH, TOC, disfunção executiva, mutismo seletivo, memória fraca etc.

E, finalmente, é preciso mencionar a vulnerabilidade que a grande maioria de nós tem a sofrer meltdowns shutdowns, em situações de muito estresse acumulado e/ou sobrecarga sensorial.

Quando o autista está em algum desses estados, perde parcial ou mesmo totalmente, por alguns minutos ou horas, o controle de si mesmo e sua capacidade de se comunicar. Em situações assim, a "leveza" e a "alta funcionalidade" atribuídas ao autismo de nível 1 desaparecem.

Considerações finais


Chamar de "leve" o autismo de nível 1 de suporte atrapalha muito mais do que ajuda no acolhimento dessa categoria de autistas pela sociedade.

Esse rótulo passa a falsa impressão de termos uma deficiência mais "branda" e sermos muito mais "próximos dos neurotípicos" do que os autistas de graus maiores. E esconde uma vida de sofrimentos, privações e percalços severos, por causa do capacitismo que nos cerca e nos oprime, em meio a uma sociedade que não acolhe a neurodiversidade.

Agora que você tem mais consciência disso, considere abandonar a rotulação dos autistas de nível 1 como "autistas leves". Reconheça nossa necessidade de suporte e nossas demandas pela aceitação do autismo, pela nossa inclusão e pela abolição do capacitismo.

41 comentários:

  1. Obgd pir este artigo, mudou completamente meu pensamento sobre o assunto, desejo sorte pra vc e serei um diferencial nas relações com pessoas ditas autistas leves.

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    1. Gratidão! Minha neta foi diagnóstica recentemente com autismo leve! Esse texto muito bom, vai me ajudar a saber como lidar com ela! Obgda !!

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    2. Nossa, que artigo incrível! Descreve as dificuldades do meu filho. Obrigada!

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  3. Amei o artigo, meu filho tem autismo leve e as vezes é complicado, as pessoas olham e acham que ele não tem nada, ficam olhando com olhar de críticas.

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    1. Eu como autista leve, hoje com 25 anos de idade, já passei muito por isso que você relata que acontece com o teu filho... Esses olhares ao longo do tempo acabam machucando muito a gente, especialmente quando ficamos velhos o suficiente para perceber que as pessoas ditas neurotípicas não recebem esse tipo de repressão. Por isso é tão importante ter uma família que te apoia, quando a família não apoia o quadro pode acabar sendo até mesmo pior para a criança. Eu tive um pai e uma irmã que tinham/tem até hoje enorme dificuldade em lidar com o meu autismo, e o que me salvou foi ter sempre ao meu lado uma mãe maravilhosa que sempre me compreendeu e respeito. Um grande abraço e tudo de bom pro teu filho!

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  4. Texto excelente! Tem muita clareza e realmente nos faz refletir sobre o tema. Parabéns!

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  5. Recentemente minha filha de 13 anos foi diagnosticada com autismo. Estou tentando ajudar ela a ter uma vida adulta onde ela possa superar as dificuldades e possa ser independente. Seu texto me ajudará muito. Obrigada!!!!

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  6. Acredito que além do tdah eu tenha autismo leve,belo texto e me identifiquei com quase tudo...

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    1. Tô ligado... Fico contente que tenha ajudado vc a se identificar com sua condição.

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  7. Robson, você mostra nesse texto as grandes dificuldades que o autista seja leve.moderado, grave, passa na sociedade onde vivemos. Mas todos os desafios não nos deixarao desistir de lutar por eles. bom

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  8. Robson, você mostra nesse texto as grandes dificuldades que o autista seja leve.moderado, grave, passa na sociedade onde vivemos. Mas todos os desafios não nos deixarao desistir de lutar por eles. bom

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  9. Excelente texto, recentemente defendi minha tese sobre a inclusão de autistas no mercado de trabalho.
    Tenho um filho autista e me preocupo com seu futuro, e este texto relata muito do que vivo com ele.

    Parabéns.

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  10. Obrigada por compartilhar sua vivência, Robson! Que seu relato ajude as pessoas a entenderem o autismo e saberem conviver com os autistas. Estamos investigando seu meu filho é autista. Bom 2019!

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  11. Me ajudou a compreender ainda mais meu filho. Obrigado.

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  12. Me faltam palavras pra agradecer pela clareza e ajuda advindas desse texto. Meu filho é autista leve. Tem dez anos. Obrigada. E obrigada. Vc me vestiu com a pele dele. Agradeço de coração, por isso.

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  13. Muito bom seu texto, Robson. Tenho um filho que tem essas características. Eu não havia pensado dessa forma até então. Muito esclarecedor. Parabéns!

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  14. Texto excelente...meu filho tem 14 anos e de grau leve...sempre pergunto para ele se ele no momento está feliz...sei que ele vive os momentos de felicidades...mas nunca sei se ele é feliz...nunca faltou amor por ele..ele é mais que uma pessoa especial para nós..um filho excelente carinhoso...minha vida

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  15. Robson...obrigada pelo texto...meu filho mAis velho é autista leve...tem 17 anos e está enfrentando exatamente o que vc descreveu...o seu texto ajudou muito.

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  16. Nossa é isso mesmo minha filha tem autismo leve, na escola as professoras acham que ela não precisa de acompanhamento nas atividades mais ela se irrita e as vezes não faz a tarefa.é muito bom o texto esclarece muita coisa.ótimas palavras.

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  17. Nossa é isso mesmo minha filha tem autismo leve, na escola as professoras acham que ela não precisa de acompanhamento nas atividades mais ela se irrita e as vezes não faz a tarefa.é muito bom o texto esclarece muita coisa.ótimas palavras.

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  18. Parabéns pelo texto, muito esclarecedor. Minha filha tem 12 anos e autismo leve. Me identifiquei bastante, ela vai em psicólogo. Mas como família como podemos ajudar mais.

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  19. Amei! Descobri no fim do ano passado que o meu filho tem autismo leve. Ele reclamou que ninguém quer ser amigo dele na escola mas eu achava que era coisa da cabeça dele . Essa coisa com cheiros fortes achei que ele era sensível por causa da asma. Foi mt esclarecedor. Obrigada!

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  20. Tenho um Príncipe dado por Deus que hoje tem 19 anos diagnosticado com Tea sim e muito difícil arrumar uma colocacao de emprego ele e super inteligente e se nao entender o porque da dificuldade da fala ninguem percebe ja concluiu o ensino medio agora vai fazer cursos mas e muito sofrido os falta de conhecimento das pessoas desse quadro o governo nao fala muito sobre isso

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  21. Adorei o texto, meu filho tbm é autista leve, está com 4 anos e as pessoas não entendem o medo e muitas vezes a falta do medo, das noções de perigo, por sempre estarmos junto sem deixa-ló sozinho muito tempo. Sempre temos que explicar e quase mostrar diagnóstico para provar.

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  22. Eu passei por isso no meu primeiro emprego registrado (foi concurso público). Fui dispensado após o período de experiência.

    No meu segundo emprego registrado (também concurso público) eu fui já com um roteiro mental preparado, eu também já sabia o que eu deveria ou não fazer, mas o "sincericídio" ainda tava lá. 🤔

    Ainda não estou certo da possibilidade de eu ter autismo leve, mas muita coisa confere com o que já passei e ainda passo. 🤔

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  23. Perfeito...
    Meu filho tem autismo leve, e sei bem como é triste ver o afastamento dos poucos amigos, vê-lo se esforçando para se encaixar numa sociedade que acha que autismo leve não é nada demais.

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    1. Valeu :) Juntos lutamos pra que esse preconceito odioso seja erradicado algum dia e nos aceitem do jeito que somos.

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  24. E verdade .as pessoas as vezes fala assim, né esse que tem autismo? mas não parece. Ele querem fala que agente tá mentindo. E isso dói muito em uma mãe.

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  25. Parabéns pelo texto !Descobri a poucos dias que minha filha de 6 anos é autista. Mesmo já tendo indícios a anos,sofri muito por não querer o sofrimento dela. Tive crises de ansiedades. Mas não pq não aceite. Porque é minha caçula e queria protegê-la de tudo,mas é assim mesmo que ela vive,poucos amigos,a sinceridade dela acaba me divertindo kkk,não gosta de cheiros fortes,mas adora um show de Rock �� principalmente metal. Muito obrigada pelos esclarecimentos.

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