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Imagem do trailer do filme "Music" da cantora Sia |
No final da semana passada, a cantora Sia revoltou a comunidade autista ao anunciar o filme Music, que conta a história de uma menina autista não oralizada, por ter contratado a atriz e dançarina neurotípica Maddie Ziegler, ao invés de uma autista, para fazer esse papel principal e por sua reação odiosa e insultuosa às críticas de pessoas neurodiversas.
O caso desse filme trouxe à tona um debate muito importante dos movimentos das pessoas com deficiência: a ocorrência do cripface em filmes, séries, novelas e peças teatrais.
O que é esse tal de cripface? E por que ele causa tanto repúdio entre a população autista? Este artigo vai apresentar a você esse conceito que poucos hoje conhecem fora do ativismo anticapacitista.
O que é o cripface?
O cripface é o empregamento de atrizes e atores sem deficiência para fazer papéis de pessoas com deficiência.
No caso do autismo, que este artigo enfoca, ocorre quando um artista neurotípico é designado para interpretar um personagem autista.
O nome cripface é uma junção de crippled (sinônimo de disabled, pessoa com deficiência em inglês) e face (rosto, face). Remete ao blackface, o condenável ato de pessoas brancas, na tentativa de imitar pessoas negras, pintarem o rosto de preto e, no caso de performances artísticas, mimetizarem estereótipos racistas.
Alguns exemplos disso são as novelas Malhação: Viva a Diferença e Amor à Vida, os seriados Atypical, The Good Doctor e As Five (esta última com a mesma personagem autista de Viva a Diferença) e os filmes Tudo que Quero e Rain Man.
A primeira impressão, para os que não entendem isso como algo errado, é que falar de autismo mesmo empregando somente atores neurotípicos seria um avanço a ser apreciado. Afinal, o filme, série, novela ou peça teatral em questão está “conscientizando” as pessoas sobre como um autista vive e se comporta e quais são as suas necessidades e demandas.
Só que essa visão leiga não percebe diversos problemas sérios nesse costume, que não existiriam se autistas de verdade fizessem o papel dos personagens neurodiversos.
Os problemas dos filmes com personagens autistas interpretados por atores neurotípicos
A primeira questão é que sempre que uma pessoa neurotípica é chamada para fazer o papel de uma autista, uma neurodiversa deixa de ser contratada para esse fim.
Com isso, o grave problema da sub-representação de autistas e demais PCDs nas telas é perpetuado. Para você ter uma ideia, segundo o The Annenberg Inclusion Initiative, apenas 2,7% dos personagens dos 100 filmes de maior bilheteria de 2016, não incluindo figurantes, tinham alguma deficiência. E dentro desse pequeno percentual, apenas 5% deles eram interpretados por atores realmente com deficiência.
Ou seja, apenas 1 em cada 1000 personagens de filmes é interpretado por uma PCD. Uma sub-representação absurda!
O segundo maior problema no cripface de personagens autistas é que geralmente os produtores, roteiristas, diretores e atores - via de regra, todos neurotípicos - fazem uma retratação errônea e cheia de estereótipos sobre como um autista vive e se comporta.
O autista geralmente é mostrado como um personagem branco cisgênero jovem - e majoritariamente do gênero masculino -, um “grande gênio”, com stims caóticos, infantilizado, cheio de comportamentos “esquisitos demais” (como chamar palavrões compulsivamente em público), exageradamente excêntrico, entre outros.
E para desempenhar o papel de autista, o ator ou atriz neurotípica faz literais mímicas que tentam simular, por exemplo, os stims, o sofrimento de sobrecarga sensorial, comportamentos autísticos diversos etc.
Por não ser autista, dificilmente ele(a) consegue fazer tudo isso de maneira realmente fiel ao comportamento real das pessoas neurodiversas. Além disso, o uso de mímicas para imitar autistas é considerado pela comunidade autista algo muito desrespeitoso e capacitista.
Em outras palavras, segundo diz a ativista autista Ellen Jones no site do jornal The Guardian, “o que estamos vendo na mídia mainstream não é um reflexo verdadeiro do autismo. Estamos, ao invés, vendo o que os neurotípicos acham que o autismo é”.
O caso do filme Music
A personagem Music, do repudiado filme homônimo, exibe vários estereótipos autísticos no trailer:
- É descrita como alguém que vê o mundo de maneira “completamente diferente” da dos neurotípicos;
- Seus traços autísticos são sempre exagerados, não correspondendo aos da maioria dos autistas - incluindo os de níveis 2 e 3;
- Comporta-se de maneira sempre muito infantilizada mesmo já sendo uma adolescente;
- Diz apenas frases básicas através do dispositivo de comunicação alternativa (como “Eu estou triste” e “Eu estou feliz”);
- Exibe-se como uma pessoa extremamente excêntrica o tempo todo.
O filme Music leva a concepção preconceituosa do autismo por cineastas neurotípicos a níveis ainda mais absurdos quando sabemos que:
- Sia diz ter obtido o assessoramento da ONG Child Mind Institute, entidade de neurotípicos adepta do modelo médico do autismo e defensora da criticada terapia ABA de “correção” dos comportamentos autísticos e “normalização” de crianças autistas;
- Mostra-se adepta de atitudes e crenças muito capacitistas, como não ver o autismo como deficiência, mas sim uma “habilidade especial”, ter aversão ao conceito de deficiência, enxergar o espectro autista através de rótulos de “funcionamento” (saiba neste artigo por que isso é um problema), usar supostos funcionários autistas da equipe de produção como token para tentar justificar a discriminação que promoveu e ter apenas neurotípicos, ao invés de autistas defensores da neurodiversidade, como conselheiros;
- A atriz Maddie Ziegler, que faz o papel da autista Music, segundo o site internacional da revista Marie Claire, assistiu a vídeos de crianças autistas sofrendo meltdown para “entender” como deveria atuar. Tais vídeos são repudiados como antiéticos e cruéis, por violar a intimidade delas, serem gravados sempre sem o seu consentimento, exibir o autismo como uma doença ou aberração que precisaria ser “curada”, fomentar o preconceito contra autistas e despertar a pena dos telespectadores por suas mães, pais e cuidadores e a demonização do autista. Não é à toa que muitos autistas têm lutado pelo banimento desse tipo de conteúdo do YouTube.
Com isso, Music traz um exemplo muito agressivo, para não dizer extremo, de cripface. O menos mal é que a péssima repercussão do trailer do filme e da atitude reacionária de Sia contra seus críticos está fortalecendo o debate que originou este artigo e, por tabela, despertando ainda mais a força do movimento autista.
Conclusão
O cripface, sendo uma forma de discriminação contra autistas e fomento de crenças capacitistas, é um grave problema que precisa ser conhecido pela sociedade e combatido desde já.
Os estúdios precisam ouvir de verdade a população autista - juntamente com as demais pessoas com deficiência -, tomar consciência do problema da sub-representação da categoria neurodivergente, parar de empregar atores neurotípicos para fazer, por meio de mímicas do nosso comportamento, o papel de autistas e, finalmente, incluir atores neurodiversos que interpretem personagens idem.
As estatísticas e costumes vergonhosos que atestam o capacitismo generalizado no cinema e na teledramaturgia precisam virar coisa do passado. Menos cripface, mais representações autênticas do autismo por autistas nas telas e palcos!