quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A discriminação contra autistas na esquerda, como isso pode levar muitos de nós a buscarem a direita e como prevenir isso

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um semicírculo com vários prendedores de papel coloridos com carinhas felizes aparece no rodapé da imagem, quanto mais acima aparece um prendedor amarelo isolado sem expressão facial. Fim da descrição.

Editado em 21/12/2022

Aviso de conteúdo: Este artigo contém menções a capacitismo, discriminação e abusos verbais contra autistas. Leia-o apenas se tiver segurança de que não sofrerá gatilhos psicológicos.
Obs.: Este artigo não é antiesquerdista, nem é uma generalização de todas as pessoas neurotípicas de esquerda.

Algo infelizmente sistemático nas esquerdas hoje, desde coletivos social-liberais e socialdemocratas até marxistas e anarquistas, são a exclusão e invisibilização de nós autistas e das nossas pautas.

São muito comuns nesses meios o capacitismo contra nós, o baixo conhecimento sobre as pautas da neurodiversidade e a exigência sutil de fortes habilidades sociais para as pessoas se integrarem e permanecerem nos movimentos sociais e coletivos políticos.

Esse quadro de exclusão expõe muita gente da comunidade autista a um sério risco: o de serem cooptados pela direita. Isso inclui tanto o voto em candidatos conservadores que promovem assistencialismo a pessoas com deficiência quanto a adesão ideológica ao neoliberalismo.

Se você está entre as pessoas de esquerda que ainda não têm consciência desse problema, convido você a conhecê-lo mais a fundo neste artigo. Depois de se conscientizar sobre ele, considere levar o debate para dentro dos movimentos dos quais você participa.

A exclusão da categoria autista entre as minorias defendidas pelos neurotípicos de esquerda

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um círculo de figuras humanas de cartolina dando as mãos e formando um grupo, enquanto no lado esquerdo uma figura humana parecida de cor diferente aparece isolada, como se tivesse sido discriminada pelo círculo, e cabisbaixa. Fim da descrição.

O primeiro aspecto mais destacável do problema que aqui denuncio é a não inclusão do movimento autista e de suas pautas por parte da grande maioria dos neurotípicos de esquerda, pelo menos no Brasil.

Nessa metade do espectro político, fala-se muito da classe trabalhadora, da população em situação de pobreza ou miséria, das mulheres, das pessoas racializadas, das LGBTQIAP+, das minorias religiosas, dos refugiados e imigrantes de países pobres etc.

Inclusive está-se começando a incluir as pautas das pessoas com deficiência em geral - pelo menos as com deficiências físico-motora, auditiva, visual e/ou intelectual - e dos animais não humanos.

Mas ainda não se começou a falar com a devida frequência, nem mesmo como pertencentes à categoria das PCDs, dos autistas.

As nossas pautas, entre elas:

  • O combate ao capacitismo;
  • A derrubada do modelo médico do autismo em prol do modelo social;
  • O enfrentamento à exclusão de autistas do mercado de trabalho;
  • O controle dos estímulos sensoriais nos espaços públicos;
  • A renda mínima para autistas;
  • A compreensão e respeito às nossas limitações de socialização e comunicação,

quase nunca são debatidas pelos coletivos políticos progressistas - exceto o próprio movimento autista.

O capacitismo e a exclusividade neurotípica nas reuniões, atividades, lazeres e confraternizações dos movimentos sociopolíticos

Pelo contrário, é muito comum ignorarem a nossa existência. Costuma-se nos relegar de maneira generalizada àquele clássico estereótipo, o do menino branco de classe média que só vive isolado em casa, na escola especial e nas terapias e não se comunica nem participa da vida pública.

Porque o que se vê - ou, pelo menos, o que eu presenciei em todas as vezes em que tentei participar de coletivos políticos de esquerda ou veg(etari)anos - é uma ordem social voltada exclusivamente para neurotípicos predominantemente extrovertidos.

As pessoas que entram nesses grupos são constantemente pressionadas, mesmo que de maneira sutil, a:

  • socializar-se;
  • perceber de imediato (ou conhecer previamente) e entender plenamente todas as regras sociais implícitas;
  • expressar-se da maneira mais clara e recheada de nuances não verbais possível;
  • estabelecer e manter habilmente contato visual com seus interlocutores;
  • e entender fluentemente que mensagens a postura corporal, a expressão facial, os movimentos dos olhos, a entonação da voz, a gesticulação manual etc. dos outros estão transmitindo.

Ficamos sob a angustiante sensação de estar sob coação implícita do ambiente e das pessoas ao nosso redor para que nos comportemos como se fôssemos neurotípicos. Isso nos força a mascarar o nosso comportamento, no que cedo ou tarde acabamos quase que inevitavelmente falhando.

Ai daquela pessoa que violar alguma norma social, por não tê-la percebido ou entendido. Ai dela se, por exemplo, falar alguma verdade (mesno que não seja antiética) sem filtro, comer de maneira que achem exagerada em confraternizações, entender de maneira literal alguma fala repleta de significados ocultos.

Ela será duramente criticada, repreendida e maltratada, tendo suas dificuldades de compreensão normativa e comunicacional tratadas como desvio de caráter, estupidez, lerdeza.

Ai também do autista que tem dificuldade de se expressar verbalmente, por motivos como o cansaço mental, a sobrecarga sensorial, a insegurança psicológica, o medo de reações negativas e rejeição e a oscilação da capacidade de encadear e desenvolver suas ideias com clareza.

Não será levado a sério, não terá suas colocações e sugestões devidamente consideradas e debatidas. Será tratado como cidadão de segunda classe.

E mesmo que consiga evitar violar o quase indecifrável código social presente nas reuniões e eventos sociais do coletivo e discursar relativamente bem, ele - salvo se for um dos palestrantes - tende a ser escanteado e ignorado.

Afinal, suas dificuldades de comunicação e entrosamento em meio a um espaço de socialização intensiva o fazem ser visto, pelos neurotípicos, como alguém pouco relevante, muito imaturo, com pouco ou nada a contribuir e desinteressado em colaborar com os deveres silenciosamente exigidos.

Tenderá a não conseguir fazer amizades, nem participar com a eficiência esperada em determinados trabalhos, nem estabelecer laços de companheirismo e fidelidade ali dentro. Com isso, não será integrado, incluído, chamado - a não ser de maneira formal e fria - para as atuações do movimento.

Digo isso porque, em várias vezes, principalmente no meio vegano, eu passei por situações extremamente chatas nas quais comportamentos (que eu não sabia serem) autísticos meus foram criticados e condenados de maneira humilhante.

E soube de pelo menos duas pessoas autistas que sofreram abusos verbais parecidos de indivíduos neurotípicos ditos de esquerda - uma delas me relatou o ocorrido e a outra eu presenciei sendo atacada em público no Twitter.

Isso sem falar que esses ambientes politizados são repletos de estímulos sensoriais que para nós autistas são muito nocivos.

Muita gente falando ao mesmo tempo, megafones e carros de som emanando sons muito altos, música muito estridente, cheiros fortes de comida - principalmente carnes - e cigarro por todos os lados, luzes que às vezes estão além do que nossos olhos aguentam...

Tem-se ali um ambiente propício para nos sentirmos sobrecarregados, estressados e à beira de um meltdown ou shutdown. Se passamos mal por causa disso, ninguém no local sabe como nos socorrer e nos acolher.

Sem habilidades para lidar com autistas passando mal, os neurotípicos presentes podem levar o autista em estado de sofrimento a outro ambiente não menos sensorialmente carregado e estressante, o que só vai piorar a situação.

Em resumo, são ambientes capacitistas, demasiadamente hostis e excludentes à presença de autistas. Que autista ainda tem disposição de integrar, por exemplo, um partido, coletivo universitário ou movimento social organizado (exceto o próprio movimento autista) depois disso?

Como muitos autistas, depois de discriminados pela esquerda, podem ser cooptados pela direita

Uma esquerda que não considera a existência dos autistas e impõe dolorosos obstáculos sensoriais e atitudinais à nossa participação em seus coletivos tende a não conquistar nem manter a convicção de muitos de nós.

Aqueles de nós, principalmente adolescentes e jovens adultos, que a idealizavam como acolhedora, inclusiva e defensora para com todas as minorias acabam se decepcionando duramente.

Com isso, boa parte da nossa população termina carregada de ressentimento e de uma visão negativa sobre como pessoas de esquerda se comportam.

Desiste dessa parcela do espectro político e busca outras que à primeira vista soem mais compatíveis com sua própria condição de vida, que os acolha.

É aí que encontram no neoliberalismo e no “libertarismo” de direita, com seu apelo à autonomia do indivíduo, uma tendência político-ideológica supostamente mais confortável, acolhedora e reconhecedora de suas necessidades e sofrimentos.

Discriminados por correntes políticas voltadas para o progresso da coletividade, são convencidos por essas ideologias de que a “saída” seria defender a si mesmos, como indivíduos, de uma sociedade “naturalmente” cruel, violenta e egoísta.

São influenciados por ideólogos que dizem que a esquerda é a verdadeira opressora e a direita é quem traz liberdade e oportunidade. Acham que isso é verdade porque, de fato, foram excluídos e discriminados por movimentos progressistas.

Adicionalmente, veem produtos necessários para o seu bem-estar, como stim toys, abafadores de som e games que tornam a vida solitária mais divertida, sendo disponibilizados pelo mercado. 

Descobrem o empreendedorismo e os trabalhos de freelance em home-office como saídas para o desemprego neurodivergente que os progressistas não estão lutando como deveriam para combater.

Daí acreditam que o capitalismo está do lado deles, que podem, com esforço próprio, ser beneficiados pela meritocracia e conseguir uma vida confortável sem precisar da luta política.

E tomam conhecimento de políticos liberais ou conservadores, como Mara Gabrilli e Romário, defendendo pautas que grande parte da esquerda tem deixado de lado em prol das pessoas com deficiência.

Com isso, passam a acreditar que a saída para uma vida melhor e mais aceitadora da sua existência é pela direita

Ou seja, pela liberdade individual, pela valorização do mercado e da iniciativa privada, pelo empreendedorismo, pelo trabalho duro que lhes daria condições de ter uma vida mais digna e pelos políticos opositores do progressismo.

As atitudes e medidas que as esquerdas precisam tomar urgentemente para reverter a exclusão e endireitamento dos autistas

Descrição da imagem #PraCegoVer: Um desenho em computação gráfica de várias pessoas coloridas em cima de um cilindro branco largo que parece uma tampa de frasco. No canto direito do desenho, uma das pessoas acima do cilindro segura a mão de uma que está fora dele, para incluí-la no grupo em cima do objeto. Fim da descrição.

Diante desse perigo de muitos autistas ressentidos pelo capacitismo de esquerda aderirem à direita, ressalto que é muito urgente que as esquerdas repensem e mudem a forma como estão nos tratando.

É preciso que os neurotípicos progressistas:

  • Em primeiro lugar, abram espaço para autistas ativistas falarem, ora online, ora nos espaços físicos utilizados pelo movimento/coletivo, sobre nossa luta, nossas reivindicações e o capacitismo dentro das esquerdas;
  • Se conscientizem sobre as nossas características, necessidades, sofrimentos, demandas e lutas políticas como minoria - e percebam que essa é a verdadeira “conscientização do autismo” que queremos para dias como o 2 de abril;
  • Reconheçam seus privilégios como pessoas tratadas pela sociedade como o “normal”, o padrão aceito de desenvolvimento e funcionamento cerebral, assim como o capacitismo que praticam no dia-a-dia e precisam desconstruir;
  • Aprendam a identificar pessoas com comportamentos autísticos e perceber, por meio da observação e de perguntas que não violem a privacidade, se elas são ou não autistas;
  • Conversem, com a devida disposição de ouvir, com aqueles dentre nós que estão dispostos a disseminar a bandeira da neurodiversidade e do anticapacitismo, de modo a conhecer melhor o que reivindicamos e declarar a solidariedade e a aliança das quais precisamos;
  • Após terem passado por essa conscientização, eduquem outros neurotípicos de seu movimento/coletivo sobre o capacitismo e como combatê-lo;
  • Adaptem seus espaços físicos e eventos para que futuros membros autistas se sintam realmente acolhidos, aceitos e incluídos;
  • Adotem medidas como disponibilizar a lista das regras sociais e organizacionais do grupo e o que os membros autistas podem fazer para não as violarem, repreender atitudes capacitistas por parte de membros neurotípicos e checar se cada membro novo ou pessoa interessada em aderir ao movimento é autista ou não;
  • Façam a devida intersecção entre os movimentos sociais já consolidados e o autista - ex.: incluindo as pautas das mulheres autistas no feminismo e as das pessoas LGBTQIA+ autistas no movimento LGBTQIA+, considerando a situação de opressão dos trabalhadores e desempregados autistas.

Com essas atitudes, muitos autistas deixarão de ver os ambientes de esquerda como opressores e hostis contra eles. E cada vez menos de nós buscarão na direita individualista o que até hoje não encontraram nos movimentos sociopolíticos.

Conclusão

Os neurotípicos de esquerda precisam perceber, à medida que fortalecemos o movimento autista, o quanto estão sendo, em sua grande maioria, capacitistas contra nós e, nesse contexto, tendo atitudes que se contradizem com seus próprios princípios éticos e políticos antiopressão.

Assim como já se combate os esquerdomachos, os LGBTfóbicos e a mentalidade colonizada, é mais que necessário se começar a enfrentar também as posturas de discriminação e preconceito contra autistas nos ambientes de reunião, organização e interação social progressistas.

Isso é essencial para que muitos de nós sejam salvos de ter uma imagem péssima e traumática das esquerdas e adotarem posturas conservadoras e individualistas que, no final das contas, prejudicam as condições de vida da maioria da população neurodivergente e podem se voltar contra eles mesmos.

Fica então a demanda para que a esquerda libertadora se torne ainda mais coerente e se desfaça de uma das suas contradições de atitude pública emancipatória versus comportamento individual opressor menos percebidas da atualidade.

6 comentários:

  1. Apesar de não ter diagnóstico, acredito que sou neurodiversa, e me identifiquei muito com a postagem. Sou de esquerda, mas nunca consegui frequentar ambientes de esquerda, e não entendia bem o porquê. Existem comunidades de autistas de esquerda? Na verdade estava procurando por comunidades de autistas, pois as dificuldades que tenho enfrentado desde busca por diagnóstico, até questões para lidar com meu quotidiano.

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    1. Oi, Dandara, acredito que ainda não existam comunidade de autistas de esquerda no Brasil - exceto talvez algum grupo do Facebook ou Whatsapp. Comunidades mais gerais de autistas têm pessoas de todo o espectro político, incluindo infelizmente a direita conservadora.

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  2. Autistas não possuem um "padrão", exatamente. Quem não convive, imagina que o autismo é diretamente ligado com a capacidade cognitiva.

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    1. Pois é, Egle, muitos neurotípicos, incluindo muitos de esquerda, ainda acreditam no "autista padrão" que o artigo menciona.

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  3. Diria que o socialismo será neurodiverso ou não será, parafraseando os libertários e vejo que a politização da questão da neurodiversidade deverá partir dos neurodiverso organizados, o ativismo individual tem seus limites e corre perigo de ser cooptado já acomodação social.

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    1. Com certeza, Alberto. E precisa ser uma organização progressista, de esquerda, senão o movimento autista acaba cooptado pelo liberalismo e pelo capitalismo e pelas empresas que só querem lucrar em cima da causa. Aliás, acredito que já existe uma vertente liberal do movimento autista, infelizmente, tal como tem o feminismo liberal, veganismo liberal, movimento negro liberal, movimento LGBTQIA+ liberal etc.

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