sábado, 21 de setembro de 2019

Resposta ao Introvertendo sobre o ativismo autista contra o artigo das “trancinhas teleguiadas”

Print do compartilhamento do antigo texto "As trancinhas teleguiadas do 'produto' Greta Thunberg", exibindo uma imagem de uma manifestação com um boneco gigante, de rosto carrancudo, da ambientalista sueca, o título do texto e a palavra "Deletado" por cima da imagem

Aviso de conteúdo: Este artigo contém referência a discursos capacitistas e lembranças traumáticas. Leia somente se estiver seguro de que não sofrerá gatilhos psicológigos.

Na última sexta-feira, o podcast Introvertendo, episódio 68, terceiro bloco, debateu o hoje extinto artigo “As trancinhas teleguiadas do ‘produto’ Greta Thunberg” (saiba o que o texto discursava lendo minha matéria no Observatório da Imprensa). Seus integrantes comentaram também a atuação do movimento autista contra o texto e a resposta do Estadão à mesma.

Reconhecem que aquele conteúdo pegou muito pesado com a ambientalista Greta Thunberg e promoveu uma crítica de baixíssimo nível.

Porém, um deles afirmou, sem ser contestado, que a reação do movimento autista de demandar a remoção do texto teria sido desproporcional, e que o Estadão teria exagerado ao deletá-lo, acabar com o blog que o havia publicado e demitir sua autora.

Diante desse posicionamento - que eu posso considerar polêmico -, que se alicerçou em considerar apenas uma parcela daquele conteúdo, ao invés dele inteiro, eu trago esta resposta.


O artigo não merecia mesmo ser deletado?


O integrante mais crítico afirmou que As trancinhas teleguiadas... estava promovendo uma crítica política, mesmo grosseira e fraca, ao ecoativismo de Thunberg, logo, estaria no mesmo nível de qualquer outro artigo conservador em noticiários. Complementou que o tal conteúdo não necessariamente feria os Direitos Humanos, nem o Código de Conduta e Ética do Grupo Estado. 

Mas será que foi assim mesmo? Veremos.

Em primeiro lugar, o Introvertendo ignorou diversos detalhes cruciais e revoltantes do texto. 

Não comentou, por exemplo, que a autora chamou Thunberg de “garotinha de olhos duros” e descreveu que o rosto dela “não revela nenhuma empatia”, zombando assim de suas características físicas tipicamente autísticas.

Nem mencionou que o artigo não apenas atacava Greta, como também promovia toda uma apologia à discriminação contra crianças e adolescentes aspies, já que:
  • Chamava a Síndrome de Asperger de “perturbação neurológica” ou, em edições anteriores, “doença” ou “psicopatia”;
  • Alegava que aspies menores de idade são “sempre frágeis” e insinuava serem incapazes de pensar por conta própria;
  • Defendia que eles “não podem ser expostos, mesmo se assim quiserem” e que “não têm que querer”, subentendendo que deveriam ter suas liberdades individuais negadas;
  • Achava “imoral” e “irresponsável” pais falarem publicamente sobre a condição e necessidades dos seus filhos autistas e endossava médicos franceses que defendiam a criminalização dessa postura;
  • E na edição original, se referia ao indivíduo aspie com menos de 18 anos como “menor doente”.
Todos esses absurdos afrontaram leis brasileiras defensoras das pessoas com deficiência, autistas, crianças e adolescentes, tais como:
  • A Lei da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (nº 12.764/2012), artigos 3º e 4º;
  • A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/2015), artigos 4º, 5º e 88;
  • O Estatudo da Criança e do Adolescente, artigos 3º, 5º, 15, 16 e 17.
E também violaram diversas diretrizes do Código de Conduta e Ética do Grupo Estado, como estas:
  • “O Grupo Estado, intimamente vinculado aos interesses dos leitores, ouvintes, internautas e o público de outras mídias, defende editorialmente os direitos e as liberdades individuais, o pluralismo democrático e a identidade sócio-cultural do Brasil e de São Paulo.”
  • “O Grupo Estado defenderá os cidadãos das agressões de qualquer forma de poder e estimulará a livre iniciativa em todos os âmbitos da atividade humana.”
  • “Os produtos do Grupo Estado estão abertos ao debate dos assuntos públicos e, independentemente de suas posições editoriais, defendem o pluralismo e a diversidade de opiniões. Recusam-se, no entanto, a veicular teses que neguem a liberdade, atentem contra a dignidade da pessoa humana ou agridam os princípios da ética informativa definidos neste documento.”
  • “Em nenhuma hipótese adote um comportamento que macule a reputação e imagem conquistada ao longo de anos pelas Empresas do Grupo.”


A reação da comunidade autista foi desproporcional mesmo?


Print do comentário de uma mulher autista chamada Jhennifer, que diz: "Eu tive uma crise por causa daquela mulher (a autora do artigo capacitista)! Fiquei pensando, vai ser sempre isso? As pessoas duvidando da minha capacidade intelectual, da minha capacidade de discernimento? Pqp". O comentário aparece curtido com a reação "Triste".


O artigo mencionado, ao invés de fazer uma simples crítica política capenga ao ativismo de Greta Thunberg, trazia um discurso de ódio que incentivava a discriminação contra autistas e carregava expressões e “opiniões” típicas de bullying capacitista. Portanto, causou um grave impacto psicológico em muitos de nós da comunidade autista.

Reviveu dores de momentos traumáticos do nosso passado, como quando:
  • “colegas” nos dirigiam insultos capacitistas e psicofóbicos ou mesmo nos agrediam fisicamente na escola;
  • pais de colegas nossos se negavam a nos convidar para festas porque nos consideravam “doidos” ou “problemáticos”;
  • algumas escolas criminosamente se recusavam a aceitar nossa matrícula por não correspondermos ao perfil de “normalidade” e “disciplina” que esperavam de seus alunos;
  • parentes nossos nos desrespeitavam e deixavam claro que não nos aceitavam do jeito que somos.
Inclusive uma moça (vide a imagem que ilustra este item) relatou no Facebook que, ao ler o abominável texto, passou mal.

Longe de ser uma mera opinião conservadora sobre o ambientalismo juvenil global, aquele texto punha em dúvida o reconhecimento das nossas capacidades e do nosso merecimento de direitos enquanto pessoas autistas.

Suas demandas por discriminação, no atual contexto político de hegemonia da direita radical, tinham o imenso potencial de inspirar um eventual projeto de lei que flexibilizasse as leis mencionadas mais acima e assim limitasse nossas liberdades, sob o pretexto de “proteger” as “tão frágeis” crianças “com autismo”.

Foi por isso que tomamos a mesma atitude que, por exemplo:
  • o movimento feminista quando se depara com algum artigo de opinião que incentiva o assédio sexual contra mulheres;
  • o movimento negro perante um conteúdo público que nega a capacidade de pessoas negras de se tornarem grandes políticos;
  • o movimento LGBT quando um ultraconservador discursa que pessoas não heterossexuais deveriam ser presas por “ameaçar a família brasileira”.


E quanto ao Estadão?


Sobre a providência do Estadão, quero responder que:
  • A empresa fez valer seu estatuto interno, aplicando a sanção prevista para casos de artigos preconceituosos que prejudicassem a reputação e a responsabilidade social da companhia e de seus veículos de comunicação;
  • O desligamento da autora do quadro de colaboradores não chegou a ser uma demanda direta nossa, ainda que tenha sido bem-vindo por nós;
  • O portal podia (e ainda pode) sim trazer uma nota pública oficial expressando que não endossa as opiniões do texto. Tanto foi que passei mais de uma semana insistindo à sua editoria que postasse uma retratação institucional que, além de pedir desculpas a todos nós, revelasse a real razão de suas medidas contra o artigo e sua autora;
  • Mas infelizmente o site não respondeu a esses pedidos. Quem tem a perder com essa atitude é o próprio Estadão, já que fica suscetível à eventual acusação de “censura” ao posicionamento político da ex-blogueira e não recuperou totalmente o respeito que muitos leitores autistas e familiares tinham por ele;
  • Se fosse previsto no estatuto interno, o portal poderia ter, por exemplo, exigido da autora uma retratação própria, a reescrita do artigo ofensor e a retirada do conteúdo preconceituoso; advertido-a para não postar mais textos apoiando qualquer forma de discriminação; convidado um autista militante para escrever um contraponto ou direito de resposta. Medidas como essa também teriam sido bem-vindas, uma vez que nossa demanda não era inflexível.


Seria melhor o artigo ter sido mantido no ar e apenas respondido com textos e vídeos contra-argumentativos?


A frase "Intolerância capacitista não se discute" aparece em cima de uma circunferência cortada. O logo da ONG anti-autismo Autism Speaks, caracterizado como um peça de quebra-cabeça azul junto ao nome da entidade também em azul, aparece envolto e cortado por uma circunferência trespassada por uma linha diagonal. Abaixo da circunferência está a frase "Se combate!"


Um outro argumento utilizado no podcast é que o movimento autista, ao invés de demandar do Estadão a derrubada do artigo capacitista, poderia simplesmente escrever artigos de resposta, tanto expressando indignação quanto refutando cada argumento presente nele.

Se realmente fosse um texto racional, que defendesse um ponto de vista com base em argumentos políticos e filosóficos, sem incitar comportamentos irracionais e intolerantes, isso teria sim sido feito, e não seria necessário exigir sua remoção do portal.

Mas infelizmente aquele conteúdo não tinha esse teor de debate. Muito pelo contrário, era um convite aos leitores para passarem a desprezar a luta e os posicionamentos de Greta Thunberg apenas por ela ser uma adolescente aspie, supostamente incapaz de pensar e agir por conta própria e “manipulada” por sua família e pela “extrema-esquerda” em função de ser uma “menor doente”.

Ou seja, incitava a intolerância capacitista. E, de fato, animou ainda mais as hordas de cyberbullies de extrema-direita que disparam insultos e mentiras contra os perfis da jovem ambientalista nas redes sociais - segundo os próprios participantes desse episódio do Introvertendo dizem reconhecer.

Em outras palavras, era um artigo irracionalista, focado não em argumentar e defender um posicionamento, mas sim em incitar o ódio aos coletivos e indivíduos que pensam diferente da autora dele. E posturas tão violentas e opressoras como essa não se discutem, se combatem, tal como pregam os movimentos antifascismo.

Porém, preciso deixar claro que, se o Estadão não tivesse atendido à nossa demanda de retirar As trancinhas teleguiadas… do ar, teria havido sim respostas em formato de textos e vídeos, incluindo minhas. Eu havia planejado escrever uma contra-argumentação que rebateria os discursos capacitistas e antiambientalistas do texto e os compararia aos discursos dos machistas contra as liberdades das mulheres, caso ele fosse mantido publicado.


Considerações finais


Respeito democraticamente a opinião dos integrantes do Introvertendo que não concordam integralmente com o ativismo que promovemos contra o artigo capacitista e a respectiva resposta do Estadão. Mas tenho que ressaltar que o posicionamento deles teria sido bem diferente se o texto inteiro fosse levado em consideração.

No mais, continuaremos lutando pelo fim do capacitismo e das apologias à discriminação contra nós autistas na imprensa brasileira. Sempre que aparecer um texto de opinião, ou uma matéria jornalística, que contenha linguajar preconceituoso e/ou chegue ao extremo de discursar contra nossa dignidade, nossas virtudes e nossos direitos, iremos protestar com veemência.

Demandaremos, do veículo de comunicação que o publicou, a sua reescrita, com a remoção de todo o conteúdo preconceituoso. Se o material em questão for explicitamente discriminatório e apologista do ódio, exigiremos sua completa remoção e, dependendo do caso, a responsabilização profissional e judicial do autor.

Seria muito bom se tudo fosse questão de divergência democrática e racional de ideias e, assim, pudesse ser resolvido com debates cordiais nos quais houvesse aprendizado mútuo. Mas infelizmente o artigo das “trancinhas teleguiadas” não correspondia a esse ideal, já que colocava em perigo nossos direitos como cidadãos autistas, incluindo nossas próprias liberdades de expressão e atuação política.

Por isso, tivemos que reivindicar sua deleção, já que, longe de debater com seriedade o ambientalismo ou a Síndrome de Asperger, ele expressava um desejo de que pessoas como Greta Thunberg e, por tabela, eu e os próprios membros do Introvertendo fossem proibidas de se integrar plenamente ao mundo e defender um futuro melhor tanto para o planeta e a humanidade quanto para nós mesmos.

Fecho este artigo reiterando: capacitistas, principalmente aqueles que desejam nosso mal e tentam bloquear nossa liberdade e felicidade, não passarão!

2 comentários:

  1. Perfeito! Assino embaixo. Penso que caberia ao jornal abrir um espaço para que os autistas pudessem se manifestar a respeito do artigo.
    Penso que o Ministério Público do Estado de São Paulo deveria ser acionado para tomar as medidas cabíveis, tendo em vista que ao órgão cumpre a defesa dos direitos da pessoa com deficiência.

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    1. Valeu! =)
      Quanto ao Estadão abrir esse espaço, eles tiveram a oportunidade, mas infelizmente não o abriram. E em relação ao MPSP, podemos denunciar a autora do artigo se ela publicá-lo em outro lugar com alcance notório.

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