quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Um pouco de minha vida enquanto alguém que não sabia ser autista

"Eu estive esperando no escuro/Por tanto tempo..." - música da abertura dos vídeos do canal de Amythest Schaber
Até hoje sofro bastantes privações sociais por ser autista leve - tanto pela discriminação e intolerância quanto pelo meu déficit de socialização. Mas no passado eu as sofria sem saber por quê.

Como dizia a música que toca nos vídeos de Amythest Schaber, “eu estive esperando no escuro, por tanto tempo”. Pois na escuridão do desconhecimento de minha condição eu sofri bastante.

Convido você a conhecer um pouco do sofrimento que um autista leve que desconhecia sua própria condição sofreu ao longo de sua vida.

Uma lista de momentos constrangedores e difíceis que sofri em função de desconhecer o que/quem eu realmente era


Atualizado em 23/10/2018

  • Aos quatro anos de idade, psicopedagogos descobriram que eu era superdotado. Mas nenhum profissional da psicologia ou das neurociências descobriu meu autismo - até hoje. Não por eu não ter essa condição, mas sim porque, na minha infância, nunca tive contato com um especialista em autismo infantil, e na vida adulta nunca encontrei um especialista em autismo adulto leve conveniado aos planos de saúde que tive e tenho;
  • Nunca tive interesse genuíno e espontâneo de me entrosar com os amigos do meu irmão, alguns dos quais tinham/têm a mesma idade que eu. Geralmente era ou, na infância, por pressão de meus pais, que se sentiam mal de me ver crescendo como uma criança isolada e antissocial, ou, já na vida adulta, por desejo de me tornar mais sociável;
  • Na infância, até os 10 anos de idade, eu não tinha o menor interesse de fazer amizades. E era, de fato, ignorado por praticamente todos os colegas de classe - e sofria bullying de uns dois meninos -, tanto por ser bem mais jovem que eles, considerando que até a sexta série do ensino fundamental eu era dois anos adiantado em comparação com a maioria das crianças, quanto por meus comportamentos esquisitos;
  • Naquela época, ficava isolado na escola, comendo meu lanche sentado na escada que levava ao primeiro andar, e não tinha nenhum desejo de perguntar ou falar nada para outras crianças, tampouco de brincar;
  • Em duas escolas diferentes, passei vergonha diante de muitos outros alunos porque a camisa do fardamento tinha estampa no peito, do jeito que eu mais odiava (e odeio até hoje), e eu puxava ou entortava a gola da camisa para tentar tirar de cima do peito a estampa;
  • Por diversas vezes na infância, crianças neurotípicas me perguntaram, sem nenhum escrúpulo, se eu era "doido";
  • Nenhuma escola por onde passei me via como um potencial autista que precisava de acompanhamento. Afinal, a década de 90 era uma verdadeira Idade Média para autistas leves, e parecia que somente autistas moderados e severos tinham seu autismo reconhecido;
  • Aliás, nenhuma escola pela qual passei no antigo pré-escolar e no ensino fundamental e médio, tanto pública quanto privada, tinha o mínimo de preparo para incluir e atender alunos autistas - nem os leves, nem os de níveis mais severos;
  • Por muitos anos, até me aproximar da minha atual namorada Danielle, sofri com a carência afetiva, com a ausência de uma namorada. Tentei paquerar muitas vezes, mas, antes de Danielle, nunca fui reciprocamente aceito. Apenas duas mulheres manifestaram um desejo perceptível por mim, mas eu não lhes correspondia. Houve uma terceira com quem eu até fiquei por pouco menos de um mês, mas não havia uma reciprocidade verdadeira e não evoluiu verdadeiramente para um namoro, apesar de meus sentimentos;
  • Antes de Dani, minha juventude foi severamente marcada por uma necessidade intratável de ter uma namorada. Deixei de curtir o momento presente por muitos anos na expectativa de que só seria feliz de verdade namorando. Eu definitivamente não era do tipo que sabia curtir a solteirice - até porque, na nossa sociedade, geralmente só se consegue ser um solteiro feliz quando a pessoa tem amigos próximos e presentes, e só tive amigos próximos no ensino médio e em dois cursos superiores (no caso destes últimos, era apenas um amigo em cada curso);
  • Minha mãe, antes de eu assumir minha condição autística à família, costumava dizer que eu "não tive infância, nem adolescência, nem juventude". Não fazia ideia do porquê eu "optava" por não curtir a menoridade da maneira aceita pelos neurotípicos;
  • Por muitas vezes fui repreendido por amigos em função de comportamentos socialmente desagradáveis. E não entendia por que meus comportamentos não agradavam, uma vez que características muito comuns na Síndrome de Asperger são não conseguir decodificar regras sociais sutis, não ditas, até ser punido ou repreendido por quebrá-las, e o autista não conseguir entender a reação negativa dos neurotípicos aos seus comportamentos;
  • Uma vez fui expulso do voluntariado de numa agência de notícias porque abri um tópico, na comunidade dela no Orkut, criticando a linguagem que alguns jornalistas usavam em suas matérias. Não havia percebido que uma regra social sutil em empresas é evitar fazer críticas abertas desse tipo, sob pena de demissão ou expulsão. Só fui readmitido como voluntário nessa agência dois anos depois;
  • Também perdi um emprego por não conseguir perceber regras sociais ocultas. Nesse caso foi no IBGE, onde tive meu contrato temporário de agente de pesquisa rescindido por acreditar ingenuamente que seria cobrado ou advertido, e não sumariamente demitido, por empurrar com a barriga tarefas de trabalho;
  • Nunca consegui me dar bem em entrevistas de emprego. Apesar de achar, na hora, que estava me dando bem, estava na verdade tendo uma comunicação não verbal (gestos, posição das mãos e das pernas, postura da coluna e do rosto, tom de voz etc.) deficiente, que não agradava a nenhum entrevistador. E, é claro, nem eu nem o entrevistador sabíamos de minha condição;
  • Meu networking sempre foi muito pequeno, mesmo com 10 anos (hoje) de experiência como blogueiro, e nunca consegui expandi-lo satisfatoriamente. Ele está restrito, até hoje, a alguns poucos colegas, com quem às vezes é difícil ter contato;
  • Nunca consegui expandir satisfatoriamente meu currículo. Sempre me faltou interesse e desejo de fazer cursos profissionalizantes e mesmo cursos acadêmicos menores dentro de cursos universitários (ex.: um curso de marxismo ou educação ambiental dentro de um curso superior de Ciências Sociais). E minha experiência profissional é baixíssima, tendo trabalhado em empresas por menos de nove meses somados ao longo de toda a vida; 
  • Meu déficit de empregabilidade persiste até hoje. Posso dizer que, com 31 anos de idade atualmente, tenho o currículo de um adolescente de 18, considerando que meus dois diplomas de cursos superiores (tecnologia em Gestão Ambiental e licenciatura em Ciências Sociais) têm um valor extremamente baixo e marginal na nossa economia e sociedade;
  • Por muitas vezes tentei criar em mim o desejo de fazer cursos gratuitos que me permitissem ganhar dinheiro em trabalhos assalariados ou autônomos (ex.: montagem e manutenção de computadores e celulares, design de interiores, vendas etc.), mas nunca consegui realmente senti-lo;
  • Sempre fui muito “preso” à minha atual vocação de comunicador por blogs, redes sociais e canais de vídeo (fui um youtuber de pequeno alcance até 2015, e condiciono minha volta ao YouTube à manutenção da nossa democracia) e ao interesse de ser sociólogo. Nunca consegui, de maneira nenhuma, me interessar em trabalhos mais lucrativos, como empreender ou fazer cursos superiores mercadologicamente mais promissores. Apenas a partir de 2018 é que comecei a empreender em vendas afiliadas, mas num nicho que desde vários anos atrás já era o meu - o vegano;
  • Ao longo dos meus anos na licenciatura em Ciências Sociais, eu fui uma pessoa isolada, pouco sociável, e não gostava de fazer minicursos e cursos de curta duração, nem de participar de eventos como congressos e palestras (exceto quando eu mesmo era um palestrante, como foi o caso dos únicos dias do VegFest 2015 nos quais eu compareci);
  • Minha vida universitária foi muito instável. Desisti de dois cursos, quase desisti também dos dois nos quais eu me formei, tranquei um duas vezes, mudei de curso uma vez por transferência interna e fracassei em três seleções de mestrado;
  • Lembro de uma vez, em 2015, quando fazia o PIBID de Sociologia, de, numa reunião na escola onde eu acompanhava as aulas dessa disciplina, eu me sentir atordoado, confuso e sobrecarregado - mas não ao ponto de ter crise nervosa - ao tentar ouvir tantas pessoas falando ao mesmo tempo. Na época, logo quando eu contei isso, minha namorada cogitou, pela primeira vez, eu ser autista, em função disso ser uma manifestação do transtorno de processamento sensorial característico do autismo. Mas na ocasião eu neguei, por preconceito e desconhecimento sobre essa condição;
  • Durante a década de 2000, sofri bullying virtual num fórum que era repleto de pessoas extremamente preconceituosas. Era pejorativamente chamado, adivinha só, de autista. Mas não no sentido de identificação clínica com o Espectro Autista, mas sim no sentido capacitista de “retardado”;
  • Nunca consegui me socializar verdadeiramente em fóruns virtuais, nem em grupos/comunidades de redes sociais. Até hoje, mesmo em grupos de autistas no Facebook, eu sou uma pessoa distante que só se comunica, fazendo algum tópico com pergunta, quando me convém e não me aproximo de ninguém;
  • Por minha falta de traquejo social, eu fui uma persona non grata de um já extinto grupo de ativistas pelos Direitos Animais da UFPE, de 2008 a 2009. Eu fazia perguntas socialmente inconvenientes, usava o fórum do grupo para criticar a ausência de ações em alguns momentos, pedia para socorrerem animais mutilados sem terem condições, desdenhava da fé religiosa de parte dos membros… Era tido como uma pessoa desagradável, e não sabia por quê;
  • Também cometi ações socialmente desagradáveis e imaturas quando fiz inglês no SENAC do Recife, também em 2008. Literalmente invadia a sala de aula vizinha, por cuja professora eu tinha uma certa paixonite, e tentava me socializar. Pelo que percebo, também fui tido como uma pessoa desagradável por vários alunos e, provavelmente, também pela professora;
  • Em 2012, na tentativa de fazer amizades, marquei piqueniques com veganos e vegetarianos de Recife e região metropolitana em alguns meses daquele ano. Essa marcação chegou ao fim depois que ex-participantes reclamaram de comportamentos socialmente indesejados meus, como comer demais nos piqueniques, deixando pouco de alguns pratos para outras pessoas comerem, e entrar na casa de uma colega (que eu tinha a ilusão de que era amiga na época) sem um convite prévio. Ou seja, pelo que pareceu, os piqueniques de Recife foram encerrados na época por reprovação de outrem à minha não compreensão das normas sociais desse tipo de evento. E não consegui fazer nenhuma amizade nessas ocasiões;
  • Ao longo de toda a minha vida, pelo menos até os 23 anos de idade, eu tinha comportamentos e atitudes bastante imaturos para a idade. Por exemplo, num fórum virtual do qual participei aos 19 anos, tinha o comportamento de um pré-adolescente. Na comunidade de um time de futebol no Orkut em 2007 (aos 20 anos), também me comportava como um menino de pouca idade. Aos 22 anos, na UFPE e no extinto blog Consciência Efervescente, eu não me diferia muito, em comportamento e forma de expressar, de um adolescente de 14 ou 15 anos. Hoje posso me considerar mais amadurecido, mas ainda assim não conseguirei demonstrar maturidade em ocasiões de socialização - exceto com pessoas com quem me sinto totalmente à vontade para conversar sobre temas que nos despertam interesse em comum (ex.: conversar com outros autistas sobre veganismo);
  • Até me descobrir aspie, eu nutria um tremendo ódio de quem eu era no passado. Já chamei o meu eu do passado de merda, negoço (de "negócio", que coloquialmente significa "coisa", pelo menos no Nordeste), menino sem dignidade, entre outros impropérios, por ter sido um menino bastante imaturo para a idade e inconsciente cometedor de erros sucessivos. Até reprimi gostos musicais daquela época, como nu-metal, por muitos anos, só para não me identificar com quem fui no começo da adolescência. Só fui fazer as pazes com meu passado depois que me descobri autista;
  • Entre tantas outras situações das quais não me lembro com muita nitidez agora - e que vou incluir aqui à medida que me lembre.

Considerações finais


Essa lista tão grande de desventuras aconteceu tanto porque nunca fui verdadeiramente aceito e incluído como a pessoa neurodiversa que eu não sabia que era, como porque, diante da falta de profissionais que diagnostiquem e acompanhem autistas adultos em Recife sem cobrar caro, nunca tive minha condição clinicamente desvelada.

Portanto, por todos esses anos, tenho vivido privado do devido acompanhamento e tratamento psicoterapêutico, do treinamento de habilidades sociais que alguns autistas - os quais, infelizmente, posso considerar privilegiados - recebem para lidar melhor com a sociedade, da compreensão das pessoas sobre por que eu sou assim e tenho os comportamentos que tenho...

Muitas vezes ainda argumentam que eu posso mudar e me tornar mais sociável e neurotipicamente passável só com minha força de vontade e determinação. Algo dito por pessoas que nada entendem sobre as deficiências sociais dos autistas.

Ainda tenho fé de que, com muita luta e com a ajuda deste blog, as pessoas irão me entender melhor, e quem sabe trazer oportunidades que, diante do desconhecimento por parte da sociedade sobre minha natureza, eu nunca tive o privilégio de acessar ou mesmo saber que existem.

No mais, esse sou eu - uma pessoa que só passou a se conhecer minimamente muito recentemente (com a ajuda da minha namorada, que, com seu conhecimento sobre Síndrome de Asperger, fez o que nenhum profissional fez até hoje, que foi descobrir meu autismo) - e, por isso, passou, e muitas vezes passa até hoje, por uma quantidade imensa de privações, constrangimentos e discriminações.

3 comentários:

  1. Me identifiquei com muita coisa. Jeito estranho de falar/correr, ser chamado de infantil (curiosamente em determinadas situações eu era chamado de "muito maduro". Hoje é "muito evoluído", já que já sou velho 😂). Ser chamado de retardado e débil mental era recorrente. A escolinha deu uma lista de colégios para crianças "especiais" pros meus pais e os obrigou a me levar a psicólogos, sendo que o primeiro a minha mãe contou (depois de anos, eu já adulto) que me diagnosticou como "débil mental" ou coisa assim. Pode ser que ele tenha dado o diagnóstico correto e minha mãe estendeu como ofensa ou recusa. Outra escolinha (antes dessa, é que não tô lembrando na ordem), ela disse, cogitou me repetir de ano mesmo eu tendo tirado as notas necessárias.

    Também lembro que me dei mal meu primeiro emprego registrado não por causa de incompetência mas por me dar mal nas entrevistas de período de avaliação.

    Mas hoje em dia eu consigo me engajar socialmente mesmo que por uns instantes. Mas, se eu for mesmo aspie, talvez meu hiperfoco seja ficar me autoanalisando. Sei lá. Eu meio que memorizo alguns padrões de comportamento e linguagem corporal e tento ficar atento ao que posso ou não fazer ou falar. Mas aí já acho que é por decorar o que pode e o que não pode, e não por perceber. 😕

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    1. Tô ligado... Muito disso que vc descreve tem muito a ver com as atribulações sofridas por aspies. Quanto a poder se socializar por uns instantes, isso também costuma ser comum entre aspies - e nesses casos, o aspie ou se sente exausto depois de passar certo tempo com amigos e/ou colegas, ou acaba recuando espontaneamente a um estado de isolamento.
      Em relação a entrevistas, aspies costumam ter dificuldades sérias de usar e entender aspectos da linguagem não verbal, como postura corporal, movimento dos olhos e contato visual, modulação do tom da fala, escolha das palavras mais adequadas pra aquela situação etc. Entendo vc nesse sentido, até pq eu também já passei por situações assim.

      Ah sim, e assim como eu demorei um tempo considerável pra melhorar meu autoconhecimento, vc também vai passar a se autoconhecer cada vez mais =)

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    2. Questionei minha mãe novamente. Parece que o primeiro psicólogo disse que eu era "letárgico" mas fora isso normal, e o segundo psicólogo quem disse que era pra me colocar em uma escola sem horário fixo e que mexia com terra e etc (pela descrição acredito que seja uma escola Waldorf), e ela achou absurdo porque eu sempre fui "muito limpinho" e "não suportava a menor sujeira". Pelo que já li sobre esse tipo de escola, acredito que teria sido o melhor pra mim na época, mas fazer o quê né... Por outro lado, minha mãe costuma mudar as histórias, então não dá para saber o que é e o que não é. 🤷 Fora que tem algumas coisas que eu lembro, como a "lista de colégios para crianças especiais", que minha mãe não lembra. Eu só lembro porque esse aconteceu na minha frente.

      Aparentemente eu passei por exames de eletroencefalografia que indicaram normalidade. Mas até então não sei o quão preciso eram esses exames e se eles identificariam autismo leve. 😑

      Ela também contou que certa vez a coordenadora da escolinha disse que "teve que me jogar debaixo da torneira porque fiquei muito bravo porque não queria subir um morro de terra". Bem, lembrando agora eu tinha algumas manias. Não gostava de me vestir com alguém vigiando (com olhar de cobrança). E tinha vezes que eu precisava me isolar por ficar extremamente frustrado (e sempre alguém me forçava pra fora do isolamento, o que só aumentava minha miséria mental). É, tô lembrando de coisas que me esforcei para esquecer. 😑😑😑 A sensação não é nada boa. 😑😑😑 Mas enfim. Muito provavelmente eu só queria ficar no fim da fila ou subir sem auxílio. Era muito comum atribuírem coisas a mim, ainda mais que eu era praticamente mudo. Não que adiantasse falar, frequentemente eu também era tido como mentiroso (e sem motivo aparente até onde sei. Engraçado que na adolescência eu era tido como super honesto e incapaz de qualquer desvio de conduta).

      E lembrando agora, eu tinha "shutdown" praticamente todo dia. Ok, chega de memórias por hoje. Já tô ficando frustrado só de pensar nesse passado horrível. 😑😑😑😑😑😑

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